quinta-feira, 27 de novembro de 2014

VINDE, SENHOR JESUS!

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

“Vinde, Senhor Jesus” constitui uma síntese feliz do encontro da aspiração humana com o desejo expresso por Deus conservado nos textos bíblicos e, agora, proclamado na Igreja, sobretudo nas celebrações dominicais. Condensa a atitude de confiança suplicante do povo crente ao longo do Antigo Testamento, sobretudo dos sábios e dos profetas. E também das pessoas que se encontram com Jesus nos caminhos, nas aldeias e cidades da Palestina. E ainda das comunidades nascidas do testemunho e ensino dos Apóstolos. E da Igreja orante em todos os tempos, especialmente no Advento. Encontro que desvenda a nossa matriz mais original que Santo Agostinho, de modo belo e acertado, resume ao afirmar: Fizeste-nos, Senhor, para Vós, e inquieto andará o nosso coração até em Vós repousar.

A vinda de Jesus e consequente acolhimento nosso é apresentada nas celebrações do Advento: nos dois primeiros domingos, surge a vinda futura definitiva, gloriosa, escatológica; nos dois últimos, a vinda ocorrida na história, em terras da Judeia na era do rei Herodes, vinda revestida de simplicidade, pobreza, discrição, silêncio. É apresentada para avivar a consciência humana de uma outra vinda: a que se realiza na vida quotidiana, no amor à verdade, na relação solidária, na atenção libertadora dos oprimidos, na dedicação generosa ao próximo, na escuta atenta da Palavra, na participação na assembleia dominical, no testemunho público de uma vida íntegra e aberta a todos os que Deus ama e quer servir.

Sempre que destes a ajuda necessária a quem precisava, foi a Mim que a destes, garante Jesus na avaliação final das nossas vidas. Linguagem clara, acção de proximidade, reconhecimento valorativo. Cultivemos esta certeza e demos-lhe força com as nossas atitudes. 

Como Paulo na 1ª carta aos cristãos de Corinto, reconheçamos esta vinda de Cristo que nos enriquece de graças e dons, e nos chama à comunhão com Ele. Abramos o coração dizendo: Vinde, Senhor Jesus! Não percamos a oportunidade, nem deixemos que nos adormeçam as aspirações mais profundas com “produtos” e cantares de outros sabores e ritmos. 

Vinde e manifestai a verdadeira dignidade humana, espelho da vossa humanidade divinizada; despertai a consciência comum chamada a captar o sentido do que está contido nos acontecimento e nas situações da vida; captar e a intervir para que seja reconhecido o seu valor e, sendo necessário, colmatar as lacunas e os desvios que reduzem os horizontes da realização feliz de todos/as e desfiguram a beleza da criação inteira.

“Vinde, Senhor Jesus!” implora confiante a assembleia cristã após a consagração do pão e da vinho na celebração da eucaristia; implora porque acredita que já veio e se faz tudo pela salvação de todos/as e de cada um/a; implora porque reconhece que está chamada a ser como Ele e a viver na sua plenitude; implora porque quer manter-se irrepreensível no dia-a-dia e aguardar em serena e jubilosa esperança o encontro definitivo com Cristo Salvador.

Discurso do Papa Francisco ao Parlamento Europeu em 25 de novembro 2014

Francisco_Martin Schulz

 

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Vice-Presidentes,

Ilustres Eurodeputados,

Pessoas que a vário título trabalhais neste hemiciclo,

Queridos amigos!

Agradeço-vos o convite para falar perante esta instituição fundamental da vida da União Europeia e a oportunidade que me proporcionais de me dirigir, por vosso intermédio, a mais de quinhentos milhões de cidadãos por vós representados nos vinte e oito Estados membros. Desejo exprimir a minha gratidão de modo particular a Vossa Excelência, Senhor Presidente do Parlamento, pelas cordiais palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome de todos os componentes da Assembleia.

A minha visita tem lugar passado mais de um quarto de século da realizada pelo Papa João Paulo II. Desde aqueles dias, muita coisa mudou na Europa e no mundo inteiro. Já não existem os blocos contrapostos que, então, dividiam em dois o Continente e, lentamente, está a realizar-se o desejo de que «a Europa, ao dotar-se soberanamente de instituições livres, possa um dia desenvolver-se em dimensões que lhe foram dadas pela geografia e, mais ainda, pela história» .

A par duma União Europeia mais ampla, há também um mundo mais complexo e em intensa movimentação: um mundo cada vez mais interligado e global e, consequentemente, sempre menos «eurocêntrico». A uma União mais alargada, mais influente, parece contrapor-se a imagem duma Europa um pouco envelhecida e empachada, que tende a sentir-se menos protagonista num contexto que frequentemente a olha com indiferença, desconfiança e, por vezes, com suspeita.

Hoje, falando-vos a partir da minha vocação de pastor, desejo dirigir a todos os cidadãos europeus uma mensagem de esperança e encorajamento.

Uma mensagem de esperança assente na confiança de que as dificuldades podem revelar-se, fortemente, promotoras de unidade, para vencer todos os medos que a Europa – juntamente com o mundo inteiro – está a atravessar. Esperança no Senhor que transforma o mal em bem e a morte em vida.

Encorajamento a voltar à firme convicção dos Pais fundadores da União Europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos do Continente. No centro deste ambicioso projecto político, estava a confiança no homem, não tanto como cidadão ou como sujeito económico, mas no homem como pessoa dotada de uma dignidade transcendente.

Sinto obrigação, antes de mais nada, de sublinhar a ligação estreita que existe entre estas duas palavras: «dignidade» e «transcendente».

«Dignidade» é a palavra-chave que caracterizou a recuperação após a Segunda Guerra Mundial. A nossa história recente caracteriza-se pela inegável centralidade da promoção da dignidade humana contra as múltiplas violências e discriminações que não faltaram, ao longo dos séculos, nem mesmo na Europa. A percepção da importância dos direitos humanos nasce precisamente como resultado de um longo caminho, feito também de muitos sofrimentos e sacrifícios, que contribuiu para formar a consciência da preciosidade, unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa humana. Esta tomada de consciência cultural tem o seu fundamento não só nos acontecimentos da história, mas sobretudo no pensamento europeu, caracterizado por um rico encontro cujas numerosas e distantes fontes provêm «da Grécia e de Roma, de substratos celtas, germânicos e eslavos, e do cristianismo que os plasmou profundamente» , dando origem precisamente ao conceito de «pessoa».

Hoje, a promoção dos direitos humanos ocupa um papel central no empenho da União Europeia que visa promover a dignidade da pessoa, tanto no âmbito interno como nas relações com os outros países. Trata-se de um compromisso importante e admirável, porque persistem ainda muitas situações onde os seres humanos são tratados como objectos, dos quais se pode programar a concepção, a configuração e a utilidade, podendo depois ser jogados fora quando já não servem porque se tornaram frágeis, doentes ou velhos.

Realmente que dignidade existe quando falta a possibilidade de exprimir livremente o pensamento próprio ou professar sem coerção a própria fé religiosa? Que dignidade é possível sem um quadro jurídico claro, que limite o domínio da força e faça prevalecer a lei sobre a tirania do poder? Que dignidade poderá ter um homem ou uma mulher tornados objecto de todo o género de discriminação? Que dignidade poderá encontrar uma pessoa que não tem o alimento ou o mínimo essencial para viver e, pior ainda, o trabalho que o unge de dignidade?

Promover a dignidade da pessoa significa reconhecer que ela possui direitos inalienáveis, de que não pode ser privada por arbítrio de ninguém e, muito menos, para benefício de interesses económicos.

É preciso, porém, ter cuidado para não cair em alguns equívocos que podem surgir de um errado conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos. De facto, há hoje a tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais, que esconde uma concepção de pessoa humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma «mónada» (μονάς) cada vez mais insensível às outras «mónadas» ao seu redor. Ao conceito de direito já não se associa o conceito igualmente essencial e complementar de dever, acabando por afirmar-se os direitos do indivíduo sem ter em conta que cada ser humano está unido a um contexto social, onde os seus direitos e deveres estão ligados aos dos outros e ao bem comum da própria sociedade.

Por isso, considero que seja mais vital hoje do que nunca aprofundar uma cultura dos direitos humanos que possa sapientemente ligar a dimensão individual, ou melhor pessoal, à do bem comum, àquele «nós-todos» formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social . Na realidade, se o direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflitos e violências.

Assim, falar da dignidade transcendente do homem significa apelar para a sua natureza, a sua capacidade inata de distinguir o bem do mal, para aquela «bússola» inscrita nos nossos corações e que Deus imprimiu no universo criado ; sobretudo significa olhar para o homem, não como um absoluto, mas como um ser relacional. Uma das doenças que, hoje, vejo mais difusa na Europa é a solidão, típica de quem está privado de vínculos. Vemo-la particularmente nos idosos, muitas vezes abandonados à sua sorte, bem como nos jovens privados de pontos de referência e de oportunidades para o futuro; vemo-la nos numerosos pobres que povoam as nossas cidades; vemo-la no olhar perdido dos imigrantes que vieram para cá à procura de um futuro melhor.

Uma tal solidão foi, depois, agravada pela crise económica, cujos efeitos persistem ainda com consequências dramáticas do ponto de vista social. Pode-se também constatar que, no decurso dos últimos anos, a par do processo de alargamento da União Europeia, tem vindo a crescer a desconfiança dos cidadãos relativamente às instituições consideradas distantes, ocupadas a estabelecer regras vistas como distantes da sensibilidade dos diversos povos, se não mesmo prejudiciais. De vários lados se colhe uma impressão geral de cansaço e envelhecimento, de uma Europa avó que já não é fecunda nem vivaz. Daí que os grandes ideais que inspiraram a Europa pareçam ter perdido a sua força de atracção, em favor do tecnicismo burocrático das suas instituições.

A isto vêm juntar-se alguns estilos de vida um pouco egoístas, caracterizados por uma opulência actualmente insustentável e muitas vezes indiferente ao mundo circundante, sobretudo dos mais pobres. No centro do debate político, constata-se lamentavelmente a preponderância das questões técnicas e económicas em detrimento de uma autêntica orientação antropológica . O ser humano corre o risco de ser reduzido a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um bem de consumo a ser utilizado, de modo que a vida – como vemos, infelizmente, com muita frequência –, quando deixa de ser funcional para esse mecanismo, é descartada sem muitas delongas, como no caso dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer.

É o grande equívoco que se verifica «quando prevalece a absolutização da técnica» , acabando por gerar «uma confusão entre fins e meios» , que é o resultado inevitável da «cultura do descarte» e do «consumismo exacerbado». Pelo contrário, afirmar a dignidade da pessoa significa reconhecer a preciosidade da vida humana, que nos é dada gratuitamente não podendo, por conseguinte, ser objecto de troca ou de comércio. Na vossa vocação de parlamentares, sois chamados também a uma grande missão, ainda que possa parecer não lucrativa: cuidar da fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade no meio dum modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à «cultura do descarte». Cuidar da fragilidade das pessoas e dos povos significa guardar a memória e a esperança; significa assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade .

Mas, então, como fazer para se devolver esperança ao futuro, de modo que, a partir das jovens gerações, se reencontre a confiança para perseguir o grande ideal de uma Europa unida e em paz, criativa e empreendedora, respeitadora dos direitos e consciente dos próprios deveres?

Para responder a esta pergunta, permiti-me lançar mão de uma imagem. Um dos mais famosos afrescos de Rafael que se encontram no Vaticano representa a chamada Escola de Atenas. No centro, estão Platão e Aristóteles. O primeiro com o dedo apontando para o alto, para o mundo das ideias, poderíamos dizer para o céu; o segundo estende a mão para a frente, para o espectador, para a terra, a realidade concreta. Parece-me uma imagem que descreve bem a Europa e a sua história, feita de encontro permanente entre céu e terra, onde o céu indica a abertura ao transcendente, a Deus, que desde sempre caracterizou o homem europeu, e a terra representa a sua capacidade prática e concreta de enfrentar as situações e os problemas.

O futuro da Europa depende da redescoberta do nexo vital e inseparável entre estes dois elementos. Uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma e também aquele «espírito humanista» que naturalmente ama e defende.

É precisamente a partir da necessidade de uma abertura ao transcendente que pretendo afirmar a centralidade da pessoa humana; caso contrário, fica à mercê das modas e dos poderes do momento. Neste sentido, considero fundamental não apenas o património que o cristianismo deixou no passado para a formação sociocultural do Continente, mas também e sobretudo a contribuição que pretende dar hoje e no futuro para o seu crescimento. Esta contribuição não constitui um perigo para a laicidade dos Estados e para a independência das instituições da União, mas um enriquecimento. Assim no-lo indicam os ideais que a formaram desde o início, tais como a paz, a subsidiariedade e a solidariedade mútua, um humanismo centrado no respeito pela dignidade da pessoa.

Por isso, desejo renovar a disponibilidade da Santa Sé e da Igreja Católica, através da Comissão das Conferências Episcopais da Europa (COMECE), a manter um diálogo profícuo, aberto e transparente com as instituições da União Europeia. De igual modo, estou convencido de que uma Europa que seja capaz de conservar as suas raízes religiosas, sabendo apreender a sua riqueza e potencialidades, pode mais facilmente também permanecer imune a tantos extremismos que campeiam no mundo actual – o que se fica a dever também ao grande vazio de ideais a que assistimos no chamado Ocidente –, pois «o que gera a violência não é a glorificação de Deus, mas o seu esquecimento» .

Não podemos deixar de recordar aqui as numerosas injustiças e perseguições que se abatem diariamente sobre as minorias religiosas, especialmente cristãs, em várias partes do mundo. Comunidades e pessoas estão a ser objecto de bárbaras violências: expulsas de suas casas e pátrias; vendidas como escravas; mortas, decapitadas, crucificadas e queimadas vivas, sob o silêncio vergonhoso e cúmplice de muitos.

O lema da União Europeia é Unidade na diversidade, mas a unidade não significa uniformidade política, económica, cultural ou de pensamento. Na realidade, toda a unidade autêntica vive da riqueza das diversidades que a compõem: como uma família, que é tanto mais unida quanto mais cada um dos seus componentes pode ser ele próprio profundamente e sem medo. Neste sentido, considero que a Europa seja uma família de povos, os quais poderão sentir próximas as instituições da União se estas souberem conjugar sapientemente o ideal da unidade, por que se anseia, com a diversidade própria de cada um, valorizando as tradições individuais; tomando consciência da sua história e das suas raízes; libertando-se de tantas manipulações e fobias. Colocar no centro a pessoa humana significa, antes de mais nada, deixar que a mesma exprima livremente o próprio rosto e a própria criatividade tanto de indivíduo como de povo.

Por outro lado, as peculiaridades de cada um constituem uma autêntica riqueza na medida em que são colocadas ao serviço de todos. É preciso ter sempre em mente a arquitectura própria da União Europeia, assente sobre os princípios de solidariedade e subsidiariedade, de tal modo que prevaleça a ajuda recíproca e seja possível caminhar animados por mútua confiança.

Nesta dinâmica de unidade-particularidade, coloca-se também diante de vós, Senhores e Senhoras Eurodeputados, a exigência de cuidardes de manter viva a democracia dos povos da Europa. Não escapa a ninguém que uma concepção homologante da globalidade afecta a vitalidade do sistema democrático, depauperando do que tem de fecundo e construtivo o rico contraste das organizações e dos partidos políticos entre si. Deste modo, corre-se o risco de viver no reino da ideia, da mera palavra, da imagem, do sofisma... acabando por confundir a realidade da democracia com um novo nominalismo político. Manter viva a democracia na Europa exige que se evitem muitas «maneiras globalizantes» de diluir a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os fundamentalismos a-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria .

Manter viva a realidade das democracias é um desafio deste momento histórico, evitando que a sua força real – força política expressiva dos povos – seja removida face à pressão de interesses multinacionais não universais, que as enfraquecem e transformam em sistemas uniformizadores de poder financeiro ao serviço de impérios desconhecidos. Este é um desafio que hoje vos coloca a história.

Dar esperança à Europa não significa apenas reconhecer a centralidade da pessoa humana, mas implica também promover os seus dotes. Trata-se, portanto, de investir nela e nos âmbitos onde os seus talentos são formados e dão fruto. O primeiro âmbito é seguramente o da educação, a começar pela família, célula fundamental e elemento precioso de toda a sociedade. A família unida, fecunda e indissolúvel traz consigo os elementos fundamentais para dar esperança ao futuro. Sem uma tal solidez, acaba-se por construir sobre a areia, com graves consequências sociais. Aliás, sublinhar a importância da família não só ajuda a dar perspectivas e esperança às novas gerações, mas também a muitos idosos, frequentemente constrangidos a viver em condições de solidão e abandono, porque já não há o calor dum lar doméstico capaz de os acompanhar e apoiar.

Ao lado da família, temos as instituições educativas: escolas e universidades. A educação não se pode limitar a fornecer um conjunto de conhecimentos técnicos, mas deve favorecer o processo mais complexo do crescimento da pessoa humana na sua totalidade. Os jovens de hoje pedem para ter uma formação adequada e completa, a fim de olharem o futuro com esperança e não com desilusão. Aliás são numerosas as potencialidades criativas da Europa em vários campos da pesquisa científica, alguns dos quais ainda não totalmente explorados. Basta pensar, por exemplo, nas fontes alternativas de energia, cujo desenvolvimento muito beneficiaria a defesa do meio ambiente.

A Europa sempre esteve na vanguarda dum louvável empenho a favor da ecologia. De facto, esta nossa terra tem necessidade de cuidados e atenções contínuos e é responsabilidade de cada um preservar a criação, dom precioso que Deus colocou nas mãos dos homens. Isto significa, por um lado, que a natureza está à nossa disposição, podemos gozar e fazer bom uso dela; mas, por outro, significa que não somos os seus senhores. Guardiões, mas não senhores. Por isso, devemos amá-la e respeitá-la; mas, «ao contrário, somos frequentemente levados pela soberba do domínio, da posse, da manipulação, da exploração; não a “guardamos”, não a respeitamos, não a consideramos como um dom gratuito do qual cuidar» . Mas, respeitar o ambiente não significa apenas limitar-se a evitar deturpá-lo, mas também utilizá-lo para o bem. Penso sobretudo no sector agrícola, chamado a dar apoio e alimento ao homem. Não se pode tolerar que milhões de pessoas no mundo morram de fome, enquanto toneladas de produtos alimentares são descartadas diariamente das nossas mesas. Além disso, respeitar a natureza lembra-nos que o próprio homem é parte fundamental dela. Por isso, a par duma ecologia ambiental, é preciso a ecologia humana, feita daquele respeito pela pessoa que hoje vos pretendi recordar com as minhas palavras.

O segundo âmbito em que florescem os talentos da pessoa humana é o trabalho. É tempo de promover as políticas de emprego, mas acima de tudo é necessário devolver dignidade ao trabalho, garantindo também condições adequadas para a sua realização. Isto implica, por um lado, encontrar novas maneiras para combinar a flexibilidade do mercado com as necessidades de estabilidade e certeza das perspectivas de emprego, indispensáveis para o desenvolvimento humano dos trabalhadores; por outro, significa fomentar um contexto social adequado, que não vise explorar as pessoas, mas garantir, através do trabalho, a possibilidade de construir uma família e educar os filhos.

De igual forma, é necessário enfrentar juntos a questão migratória. Não se pode tolerar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério! Nos barcos que chegam diariamente às costas europeias, há homens e mulheres que precisam de acolhimento e ajuda. A falta de um apoio mútuo no seio da União Europeia arrisca-se a incentivar soluções particularistas para o problema, que não têm em conta a dignidade humana dos migrantes, promovendo o trabalho servil e contínuas tensões sociais. A Europa será capaz de enfrentar as problemáticas relacionadas com a imigração, se souber propor com clareza a sua identidade cultural e implementar legislações adequadas capazes de tutelar os direitos dos cidadãos europeus e, ao mesmo tempo, garantir o acolhimento dos imigrantes; se souber adoptar políticas justas, corajosas e concretas que ajudem os seus países de origem no desenvolvimento sociopolítico e na superação dos conflitos internos – a principal causa deste fenómeno – em vez das políticas interesseiras que aumentam e nutrem tais conflitos. É necessário agir sobre as causas e não apenas sobre os efeitos.

Senhor Presidente, Excelências, Senhoras e Senhores Deputados!

A consciência da própria identidade é necessária também para dialogar de forma propositiva com os Estados que se candidataram à adesão à União Europeia no futuro. Penso sobretudo nos Estados da área balcânica, para os quais a entrada na União Europeia poderá dar resposta ao ideal da paz numa região que tem sofrido enormemente por causa dos conflitos do passado. Por fim, a consciência da própria identidade é indispensável nas relações com os outros países vizinhos, particularmente os que assomam ao Mediterrâneo, muitos dos quais sofrem por causa de conflitos internos e pela pressão do fundamentalismo religioso e do terrorismo internacional.

A vós, legisladores, compete a tarefa de preservar e fazer crescer a identidade europeia, para que os cidadãos reencontrem confiança nas instituições da União e no projecto de paz e amizade que é o seu fundamento. Sabendo que, «quanto mais aumenta o poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária», exorto-vos a trabalhar para que a Europa redescubra a sua alma boa.

Um autor anónimo do século II escreveu que «os cristãos são no mundo o que a alma é para o corpo» . A tarefa da alma é sustentar o corpo, ser a sua consciência e memória histórica. E uma história bimilenária liga a Europa e o cristianismo. Uma história não livre de conflitos e erros, mas sempre animada pelo desejo de construir o bem. Vemo-lo na beleza das nossas cidades e, mais ainda, na beleza das múltiplas obras de caridade e de construção comum que constelam o Continente. Esta história ainda está, em grande parte, por escrever. Ela é o nosso presente e também o nosso futuro. É a nossa identidade. E a Europa tem uma necessidade imensa de redescobrir o seu rosto para crescer, segundo o espírito dos seus Pais fundadores, na paz e na concórdia, já que ela mesma não está ainda isenta dos conflitos.

Queridos Eurodeputados, chegou a hora de construir juntos a Europa que gira, não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis; a Europa que abraça com coragem o seu passado e olha com confiança o seu futuro, para viver plenamente e com esperança o seu presente. Chegou o momento de abandonar a ideia de uma Europa temerosa e fechada sobre si mesma para suscitar e promover a Europa protagonista, portadora de ciência, de arte, de música, de valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais; a Europa que assiste, defende e tutela o homem; a Europa que caminha na terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a humanidade!

Obrigado!

domingo, 23 de novembro de 2014

É NECESSÁRIO QUE ELE REINE

 

Georgino Rocha |  Justiça e Paz – Aveiro

 

“É necessário que Ele reine” afirma São Paulo na 1ª carta aos cristãos de Corinto; reine em todos e em tudo, no coração da vida e no seio da morte, nas manhãs de primavera e no outono da existência. Sempre! A afirmação paulina manifesta o reconhecimento da função benfazeja de Jesus Cristo e da situação humana carecida de sentido para a vida e de horizontes para a esperança. Faz parte de uma das leituras da celebração da festa de Cristo Rei e atesta a visão do apóstolo sobre a missão de Jesus ressuscitado. A comunidade cristã assume esta visão e procura ser coerente vivendo e anunciando a realeza de Jesus Cristo, ao longo dos tempos.

Pio XI, em 1925, dá uma nova visibilidade a esta fé comum dos cristãos e institui a solenidade de Nosso Senhor Cristo, Rei do Universo. A “onda” histórica, então crescente, era a da indignação contra a degradação a que a sociedade havia chegado conduzida por forças políticas e económicas desumanas e sem perspectivas de futuro. E vem a queda da República às mãos de Gomes da Costa, o abalo “sísmico” na bolsa de Nova York, a ascensão de tendências totalitárias, com Hitler, Mussolini e outros a progredirem na tomada do poder… Uma nova ordem parecia emergir. O cansaço aliado à inércia abria caminho a alternativas de ditadura. 

“É necessário que Ele reine” continua a Igreja a apregoar por toda a parte. Reinar não à maneira dos senhores do mundo, mas de quem exerce o poder para servir, põe toda a autoridade na promoção do bem comum, sobretudo dos mais indefesos e necessitados. Como Jesus exemplificou de forma inexcedível e deixou em ensinamentos claros e libertadores.

Que Ele reine na consciência humana, iluminada pela verdade que liberta e pelo amor que sociabiliza; no matrimónio heterossexual, fonte de felicidade do casal e berço aconchegado da família; na sociedade, espelho da dignidade humana e recheio de valores solidários; na Igreja, samaritana de feridos e órfãos, abrigo seguro dos que procuram, suporte e garante dos que progridem na doação generosa aos demais, comunhão de comunidades em que a diversidade de dons e carismas converge na unidade da missão. 

Que Ele reine na justiça – sinal emblemático da sua mensagem – que constitui o alicerce da paz. O que exige leis justas e responsáveis íntegros e competentes, processos transparentes, isenção de tráfico de influências, definição e respeito pelos prazos legais razoáveis. Justiça acessível a todos, sem discriminações, que valoriza a dignidade humana em todas as circunstâncias. 

Que Ele reine na política - expressão pública da entrega incondicional pelo bem do povo – que dá solidez à convivência social em harmonia e ao desenvolvimento sustentado, procurando uma maior igualdade entre os cidadãos. Como seria diferente o clima social que vivemos, a constituição da República que nos define, a hombridade dos políticos que nos governam a todos os níveis!

Que Ele reine na economia – espelho qualificado da relação com os bens e com a sua função de serviço à pessoa humana – que garante o necessário a uma vida digna para todos e valoriza as capacidades de cada um, proporcionando-lhe oportunidades de realização feliz A este propósito é muito eloquente a atitude de Jesus no modo como conviveu com os ricos e como atendeu os pobres!

Que Ele reine na cultura da vida, no voluntariado por amor, na “ saída de si mesmo” para ir em missão às “periferias” existenciais, nos sonhos dos jovens que valorizam a castidade e a honestidade, nos idosos que fazem das suas limitações recursos para novas ousadias de serviço ao seu próximo, nos responsáveis das comunidades eclesiais que dizem não às benesses e cultivam a simplicidade de vida e a proximidade de atitudes. 

Os cristãos discípulos missionários, em parceria com as pessoas de boa vontade, são mensageiros qualificados da novidade deste “reinado” e, com a força do Espírito Santo, colaboradores preciosos da sua construção e difusão. 

sábado, 22 de novembro de 2014

SEM-ABRIGO? MAIS UMA DO PAPA FRANCISCO!

 

O Papa Francisco está sempre a surpreender-nos…

Quem acompanha, de perto, as atitudes, discursos e conversas deste Papa, leva sempre que contar aos amigos, na mesa do café, na sala de espera, nos corredores e avenidas. Não falta tema para o serão em família: há sempre um novo e surpreendente assunto de conversa, a provocar ou admiração, ou escândalo, ou a comprometedores silêncios!

Quando muitos países da nossa velha e culta - mas cansada! - Europa, criam leis e posturas para proibir a mendicidade, carregando de multas, e outras punições que podem ir até à prisão, quem for apanhado a pedir ou a dar esmola, o Papa Francisco tem uma atitude totalmente ao contrário: todos os dias são servidas refeições em refeitórios e nas ruas, a Mendigos e a Sem-Abrigo, com o apoio do Vaticano; o “Esmoler de Sua Santidade” sai às ruas para ver as dificuldades existentes, e repartir esmolas a quem tem comprovada necessidade – costume com séculos de persistência. E, agora, apoia uma iniciativa de corrente contrária a governantes do nosso Continente: “Vaticano disponibiliza três duches para sem-abrigo na colunata de São Pedro”!

Quando ouvi a notícia, e fui lendo as mensagens que me chegavam, e me provocavam, tive de ir confirmar nos meios que me dessem toda a segurança. Não por achar a atitude do Papa algo de extraordinário – a coisas extraordinárias já nos habituou – mas sobretudo por se tratar de uma atitude provocadora: então…enquanto uns perseguem, expulsam, penalizam pobres, pedintes e sem-abrigo, o Santo Padre vai abrir balneários para banhos de pessoas, iguais às que governantes, seus vizinhos, perseguem, multam e prendem?!

E, afinal, é mesmo verdade!

Este gesto tem tanto de profético como de provocante.

Um dos títulos encontrados diz assim: “A colunata de São Pedro, no Vaticano, vai acolher a partir de segunda-feira três duches para sem-abrigo, numa iniciativa do esmoler pontifício, o Arcebispo Konrad Krajewski, que teve o apoio do Para Francisco” (Agência Ecclesia, 14 de Novembro de 2014).

E a notícia diz ainda que esta ideia já começou a ser aplicada em dez paróquias de Roma!

“Isto é um serviço normal, que deveria partir do município, não de nós. Mas sabe-se que os projectos são sempre para daqui a um ano, a dois anos, a dez anos…O Evangelho, pelo contrário, manda-nos fazer as coisas “hoje”, precisou o responsável”(Ag.Eccl.).

No verão passado, dei comigo a reler o livro entusiasmante: “Aqui há pena de morte – diário de um sem-abrigo”. A gente começa a ler, e só sente vontade de parar, quando chegar o fim…

Com esta notícia, fui à estante…matar saudades do título, e reler a dedicatória pessoal do Autor, para partilhar com os Leitores uma questão – a dos Sem-Abrigo - que não pode deixar ninguém indiferente.

Mas também devo acrescentar que a nossa Diocese tem uma Instituição, nascida há 75 anos, pelo coração bondoso de D. João Evangelista – “Florinhas do Vouga” - que alimenta um Balneário, na Cidade de Aveiro, onde os Sem-Abrigo podem tomar o seu duche, mudar a sua roupa, fazer toda a higiene pessoal; e um refeitório, aberto todos os dias do ano, para o almoço e o jantar de quantos têm essa necessidade; e passa todas as noites pela Cidade, repartindo um reforço alimentar e uma bebida quente, com um grupo de generosos e persistentes Voluntários!

O Santo Padre Francisco certamente que aprova estas acções, a favor dos Sem-Abrigo de Aveiro que, não sendo muitos, são sempre demais…

Nestas noites de frio e de chuva, tem ainda mais sentido e reveste-se de maior urgência, esta presença nas ruas, junto de irmãos pobres e sem abrigo. Reparte-se comida, roupas, afectos, diálogos, e criam-se laços.

Tem sido nestes bons encontros, que entendi melhor a força da Palavra do que diz o Mestre, em Mateus 25, 40: ”Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes”.

O Santo Padre, o Papa Francisco, diz muito com aquilo que faz!

Aveiro, 17 de Novembro de 2014, dia da abertura dos duches no Varticano!

P. João Gonçalves

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A MIM O FIZESTES

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

     Cenário majestoso realça a importância da figura central e contrasta com a simplicidade dos convocados, a sobriedade das alegações, a contundência da sentença. A solenidade da grande assembleia é patente: anjos rodeiam o homem que está sentado num trono de glória, nações inteiras aparecem dos cantos da terra, o universo converge no mesmo espaço e testemunha o acontecimento. A acção a realizar é extraordinariamente simples, semelhante à de um pastor que, ao cair da tarde, ou ao chegar o tempo invernoso, recolhe o rebanho, separando as ovelhas dos cabritos. Mt 25, 31-46.

     A imagem pastoril ilustra, de forma acessível e eloquente, a mensagem que Jesus pretende “passar” aos discípulos de todos os tempos: a opção pelo futuro constrói-se no presente, a semente contém, em gérmen, a árvore, a relação solidária vive-se em atitudes concretas, a glória do Pai brilha nos gestos de fraternidade, a atenção aos “pequeninos”, a quem a vida não sorriu por malvadez humana, manifesta o reconhecimento de quem se identifica com eles e por eles vela com a máxima consideração.

     O veredicto final explicita este itinerário existencial. A sentença definitiva vai sendo lavrada agora. A herança futura chega em cada momento de bondade dispensado a quem necessita. Apenas uma condicionante é tida em conta: a relação de ajuda solidária. Se esteve presente e foi vivida, a felicidade será plena; de contrário, a desdita consumará a desconsideração praticada e fará ouvir a voz da consciência tantas vezes silenciada, A tradição cristã designa esta situação futura, já experienciada em gérmen na terra, por céu e por inferno. Deus respeita totalmente a decisão humana. Ajuda com a sua graça, sempre que lhe permitem, “espaço de manobra”. Que bem ilustrada está esta maneira de proceder, na atitude do Pai bondoso, que continuamente espera vislumbrar a silhueta de seu filho para ir a correr ao seu encontro, abraçá-l´O e fazer festa.

     Todos os “arguidos” mostram uma estranha admiração, expressa na pergunta que ficará a ecoar ao longo da história: Mas, quando foi que te vimos? Pergunta séria pois ver Deus é o grande desejo da pessoa humana. Em todo o coração está pulsando esta aspiração que só será satisfeita quando acontecer a visão que abre “as portas” à comunhão definitiva.

     A sua atitude é compreensível. E a resposta é surpreendente, aliciante e comprometedora. Não deixa margem a dúvidas. Não tece considerandos nem dá alternativas. Não supõe informação prévia nem faz exigências futuras. A mim atendeste, quando atendeste o pobre de todos os alimentos: comida, bebida, abrigo, vestuário, companhia, amizade e liberdade.

     São necessidades básicas em consonância com a dignidade humana. Este é o ponto de encontro de Deus connosco e de nós com Ele. Aqui se alicerça a consistência da nossa dignidade comum. Por isso, tudo o que é indigno do ser humano desfigura Deus e provoca alergias religiosas justificadas. E defender a visão integral da pessoa, individual e colectivamente, promover as suas capacidades de participar na construção de uma sociedade digna da condição humana é manifestar a glória de Deus e presta-lhe culto agradável.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

cuidados paliativos d’alma

 

Pedro José Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

Provérbios 31, 10-13. 19-20. 30-31: «Põe mãos ao trabalho alegremente»

I Tessalonicenses 5, 1-6: «Para que o dia do Senhor não vos surpreenda como um ladrão»

Mateus 25, 14-30: «Foste fiel em coisas pequenas: vem tomar parte na alegria do teu Senhor»

1.Reflexão

Nas leituras neste Domingo – o dia do não-esforço; do não-trabalho; não quer dizer: do não-pensar: porventura, o que ainda não-foi-dito-para-dentro – também ele cheio de Vida e Ambiguidade: somos encontrados pelos cuidados paliativos d’alma.

Da condição feminina como «arrimo» em qualquer circunstância. Convém não exagerar nessa condição de; nem desvirtuar a realidade sob o signo da violência dita «doméstica», que na saída para a «Rua», se torna mortal. A primeira leitura tem muito a dizer na contra mão do masculino, enquanto impositivo e redutor.

A «nossa» fuga diária diante da História, sob a suspeita comparativa do “ladrão nocturno” ou das “dores da mulher que está para ser mãe”: cabe perguntar, honestamente, o que é que acaba com as nossas horas felizes? Diante, por exemplo, do consumismo (aberto o questionamento…): o que é atitude de não “dormir” e por isso permanecer criterioso (“vigilante”) e despoluído (“sóbrio”)?

No evangelho, a «parábola dos talentos», na tradição de Mateus – o talento era uma unidade de peso antiga que equivalia, aproximadamente, a 21,7 quilos de prata– ficamos desconcertados!? Ficamos ou adiamos a perplexidade diante da medida super-abundante-divina? Nossa Alma, o Sentido do viver e do ser feliz, diante dos Outros em serviço e sedução amorosa: está em perigo pela ausência de risco? O que significa enterrar? O talento é Dom; e o Dom é excessivo para a nossa compreensão de criaturas diante do Criador. Talento que está para além da “aptidão” ou da “habilidade”. O risco não estará em sermos, infinitamente, talentosos porque não temos o mínimo de talentos físicos, materiais, intelectuais, morais, etc.?

Não há lugar a autopromoção, prestígio e fama, fotos e holofotes. São Dons que recebemos para a todos sermos capazes, na singularidade irrepetível: Amar e Servir! Quanto mais Amor, melhor Serviço.

Cuidados paliativos d’alma não são os últimos desejos e vontades. Não é solução remediar ou esconder os problemas espirituais – bem existenciais na sua crueza: saber comer, beber, amar, ouvir, etc. – em vez de os procurar resolver, conjuntamente, isto é, pondo os «talentos» a serviço alheio. «Propriedade: quanto mais comum mais santa» (Santa Gertrudes).

Agradecemos, desde já e aqui, todos os cuidados normais e diários d’alma terrena.

2.Oração

Mas há a vida

Mas há a vida

que é para ser

intensamente vivida,

há o amor.

Que tem que ser vivido

até a última gota.

Sem nenhum medo.

Não mata.

Clarice Lispector

FONTE: Cfr. http://www.ihu.unisinos.br/espiritualidade/comentario-evangelho/500122-domingo-16-de-novembro-evangelho-segundo-mateus-25-14-30 , acesso: 14-11-2014.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

RESPONSÁVEIS E ACTIVOS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Juízo severo, sentença drástica. Quem o poderia imaginar? (Mt 25, 14-30) O desfecho da parábola dos talentos é surpreendente, desconcertante. O “chamado” servo mau não faz mais do que proceder de acordo com as regras do tempo e do modo de ser do seu patrão: aceita o encargo, guarda com cuidado o talento e apresenta-o, sem desfalque, no regresso do senhor, acompanhando a entrega com uma justificação plausível. O seu comportamento está motivado pelo modo de ser do patrão: ter medo de quem é severo, saber de antemão que não pode falhar, pois ele quer colher onde nada semeou. Por isso manteve a rotina e fez como era hábito: escolher um local seguro, enterrar cuidadosamente o objecto recebido, gravar na memória esse local e, tranquilo, descansar aguardando o momento da reposição.

A sentença aponta a novidade da mensagem a viver e transmitir: importa mais a atitude do que o resultado, o risco do que a segurança, o investimento do que a poupança, a abertura aos outros do que o encerrar-se sobre si mesmo, o uso responsável da liberdade do que a obediência servil e tacanha. Como se verifica nos servos bons.

Jesus narra a parábola, não para dar uma lição de economia de rentabilidade capitalista, mas de responsabilidade social, de reconhecimento e desenvolvimento de capacidades, de criatividade confiante, de vigilância atenta e cooperante, de intervenção pronta e generosa. Mateus situa esta narração nas “catequeses” que o Mestre faz no Monte das Oliveiras e dirige aos discípulos e, por eles, a todos nós. Diz-lhes sem rodeios: tende cuidado convosco, geri bem os talentos que recebestes, estai preparados para as eventualidades. A quem corresponder à missão recebida será reconhecido o êxito e feito o convite: Servo bom, vem tomar parte na alegria do teu senhor. Este é o futuro anunciado que, entretanto, “se joga” no presente, nas atitudes assumidas perante as situações vividas, nas decisões tomadas face a desafios concretos e urgentes.

Agora é o tempo da responsabilidade ética. Tanto a nível da economia “soberana”, como do envolvimento na Igreja e nas múltiplas valências das comunidades e dos movimentos que a configuram e realizam; tanto a nível pessoal, como das famílias e dos grupos apostólicos que são presença e fazem intervenção na sociedade. Ninguém que se preze de ser humano se pode isolar na sobrevivência, instalar no aburguesamento, acomodar-se no divã do sossego alcançado e na zona do conforto, aguardar o desfecho do processo em curso.

A ética da responsabilidade constitui um dos eixos imprescindíveis da ética civil e, por motivos novos, da ética cristã. Todos somos responsáveis por todos. O bem comum e a justiça social constituem a sua expressão mais qualificada. Nada do que é humano nos pode ser estranho. Os talentos/capacidades de cada um estão ao serviço da dignidade de todos. A sociedade tem uma elevada força educadora e constitui o espelho do bem-estar dos seus membros. Deus conta connosco em parceria de aliança.

Tal como na parábola, os discípulos de Jesus recebem o talento da confiança: os bens de Deus e de toda a humanidade, estão-nos entregues para serem bem geridos, promovendo as capacidades de cada pessoa e do conjunto social; o talento do tempo: o bem precioso do tempo comporta a medida exacta para ser realizada a missão e imprimir a nossa marca na história, fazendo das horas que passam horas de salvação, oportunidades de realização integral; o talento do amor que reforça as capacidades humanas e as impulsiona a voos de audácia em prol dos demais; o talento da vida humana, sempre a apreciar e a valorizar, da fé em Cristo Jesus e na boa nova que nos surpreende continuamente. E tantos outros, felizmente!
O ensinamento de Jesus vem mesmo “a calhar” na crise soberana que manieta as pessoas e as molda a seu jeito, fazendo-nos “mergulhar” nos talentos que Deus, fonte da alegria e da esperança, confia à nossa responsabilidade.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Dedicação da Basílica de São João de Latrão

 

Pedro José Correia |  Justiça e Paz – Aveiro

(9 de Novembro) – por Pe. João Resina Rodrigues(*)

Ez 47, 1-2.8-9.12 - «Vi a água sair do templo

e todos aqueles a quem chegou esta água foram salvos» (Ant. Vidi aquam)

1 Cor 3, 9c-11.16-17 - «Vós sois templo de Deus»

Jo 2, 13-22 - «Falava do templo do seu Corpo»

I. Reflexão

“Durante cerca de duzentos e cinquenta anos, o Império Romano perseguiu os cristãos com grande dureza e crueldade. O édito de Milão, assinado por Licínio e Constantino em 313, concede-lhes a liberdade de culto. Puderam escancarar as portas das casas onde até aí celebravam a Eucaristia em segredo. Puderam fazer Igrejas. O imperador Constantino mandou construir para os cristãos um templo semelhante aos grandes edifícios públicos do Estado, as basílicas.

Esta primeira basílica cristã, a de Latrão, foi consagrada em 9 de novembro de 320. Considerada como “a igreja-mãe de todas as igrejas de Roma e do mundo”, era e continua a ser a catedral do bispo de Roma. (A Basílica do Vaticano é uma nova “capela” do Papa, construída no lugar onde São Pedro foi martirizado, e importante pelo espaço que disponibiliza para as cerimónias.)

Celebrar a dedicação da Basílica de Latrão não é um puro arcaísmo romântico. É um convite a dois tipos de reflexão: sobre a maneira como queremos entender-nos com os outros homens e sobre o significado do templo.

Os cristãos começaram por ser pobres e perseguidos, ninguém os queria ao pé. Veio o dia em que foram aceites. Em breve, a Igreja alcançou poder e riqueza, e fez o que lhe tinham feito a ela. Desprezou os que não lhe pertenciam, quis mandar em toda a Terra, perseguiu os que pensavam ou viviam de maneira diferente da sua. Houve cruzadas e houve a Inquisição. Finalmente, voltámos a ler o Evangelho com o coração mais humilde. E foi possível o II Concílio do Vaticano. «A pessoa humana tem direito à liberdade religiosa… Os homens têm o dever de buscar a verdade,… mas a verdade não se impõe senão pela sua própria força.» (Dignitatis humanae, n.os 1-2) «O Concílio declara estar consciente de que o propósito de reconciliar todos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, colocamos inteiramente a nossa esperança na oração de Cristo, no amor do Pai e no poder do Espírito Santo.» (Unitatis redintegratio, n.o 24)

Sublinhe-se que isto não significa que resolvemos achar normal que “cada um tenha a sua verdade”. Queremos continuar a anunciar Jesus Cristo e o Evangelho, e cada vez com mais vigor. Mas começámos a obedecer ao conselho de São Pedro, quando nos manda dar testemunho da nossa esperança, «com mansidão e respeito» (1Ped 3,16). Não nos irrita que existam nas nossas cidades ou aldeias sinagogas, mesquitas e outros templos. Queremos que existam igrejas. E ficamos felizes se as igrejas, as sinagogas, as mesquitas e outros templos forem espaços de fé e de oração, significarem menos a oposição das crenças e significarem mais a procura de Deus e a aceitação do diálogo.

As nossas igrejas e capelas são, em si mesmas, sinal do Deus de Jesus Cristo. São o espaço onde celebramos a Eucaristia, onde gostamos de rezar, com os irmãos ou a sós, onde podemos reunir-nos. As igrejas católicas e as igrejas ortodoxas encerram outra riqueza: conservam nos seus sacrários o Pão que sobejou da Eucaristia e fica presente para a nossa adoração.

Quando aos textos desta missa: O Evangelho (Jo 2,13-22) narra como Jesus expulsou os que comerciavam no átrio do Templo de Jerusalém. Era a exigência (que ainda não cumprimos por completo) de que se separe radicalmente religião e negócio. A primeira leitura, tirada do profeta Ezequiel (Ez 47, 1-12), traz a imagem da água que jorra como de uma fonte sem fim. Na verdade, acreditamos que o amor devia ser à imagem do dom de Deus, que não se esgota nem se cansa. A segunda leitura, de São Paulo aos Coríntios (1 Cor 3,9-17), afirma que cada homem é templo de Deus. O seu alicerce é Jesus Cristo, o Espírito Santo habita n’Ele.

Se tomássemos esta palavra a sério, como seria cheia de paz a presença a Deus e o encontro com os irmãos! (09-11-2008)”.

II. Oração

Deus de Jesus

Jesus de Nazaré,

que Deus nos revelaste?

Não construíste uma arca como Noé

para salvar-te com os justos.

Não edificaste como Salomão

um templo morada de Javé.

Não conduziste como Moisés

um povo à terra prometida.

Não tiveste como Abraão

uma constelação de descendentes.

Tu, Jesus

afogado no dilúvio

vida derramada pelas ruas,

templo desmoronado

em teu corpo indefeso,

geografia sem fronteiras

e sem punho proprietário,

povo universal

latejando em todo sangue

que Deus nos revelaste?

Jesus de Nazaré

limitado e corporal,

universal e justiçado,

o único futuro

tão presente,

que Deus nos revelaste?

(*) FONTES: RODRIGUES, Pe. João Resina (1930-2010), A Palavra Para os Homens – Textos Temáticos, Paulus Editora, Lisboa, 2012 pp. 322-323); Cfr. http://www.ihu.unisinos.br/espiritualidade/comentario-evangelho/500121-dedicacao-da-basilica-de-latrao-evangelho-segundo-joao-212-22, acesso: 08-11-2014.

FALAVA DO TEMPLO DO SEU CORPO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

     O gesto de Jesus, usando o chicote de cordas para expulsar os vendilhões do templo, seguido de diálogo que pretende ser esclarecedor, provoca tal “confusão” que é preciso o autor do texto vir dizer que “falava do santuário do seu corpo”. (Jo 2, 13-25). E não era para menos. O chicote do Messias, segundo uma expressão rabínica, constitui um símbolo da chegada dos tempos messiânicos: Pela purificação das intenções dos corações e pela reposição da função das coisas que, necessariamente, comportam aflição e sofrimento.

     Ao ver o espectáculo do que acontecia – o mercado havia dominado o glorioso Templo de Jerusalém – enche-se de coragem e liberta os sentimentos mais impulsivos e vibrantes. E segue-se a acção demolidora das mesas de comércio, o menosprezo pelo dinheiro e a expulsão dos cambistas, a retirada dos animais e das aves. “Não façais da casa de meu Pai um covil de ladrões” – adianta como exortação e denúncia.

     O gesto de Jesus tem um grande alcance profético. Atinge o “coração” da ordem estabelecida legitimada com o recurso à tradição. Centrada no sagrado, esta ordem tem, no Templo, a sede do poder económico, pelo comércio que nele se faz, do poderpolítico, já que nele se reúne o sinédrio que toma decisões; do poder religioso, uma vez que nele se sacrificam os animais para a oferenda. Com os abusos transforma-se de casa de Deus para a oração, em mercado para os negócios. Este é o “nó górdio” que Jesus pretende desatar, de modo que a casa de Deus seja casa do seu povo, reunida em assembleia de irmãos, que celebra o mesmo culto e escuta o mesmo ensinamento. Sem este centro, que solidez pode ter a organização político-religiosa imperante?! A reacção de defesa é imperiosa, normal.

     As autoridades pedem-lhe um sinal comprovativo da sua acção demolidora. Querem embaraçá-lo e dispor de mais um argumento para o incriminar. Jesus responde, adiantando o erguer, em três dias, do Templo que havia sido destruído. Os judeus entendem o sentido literal da afirmação de Jesus – o templo de pedra, a glória da Cidade Santa. E reagem em consequência. Jesus refere-se a outro santuário – o do seu corpo – que havia de ser erguido na ressurreição, após três dias de paixão e sepultura. Morte e ressurreição surgem como caminho a percorrer para chegar ao reconhecimento do corpo humano como santuário de Deus. E Jesus ao fazê-lo, presta o maior serviço da sua missão, realiza a suprema manifestação da sua doação.

     O corpo, destruído pelas autoridades, mas ressuscitado pelo Pai,é o novo Templo, em que habita Deus, é Jesus Cristo que nos incorpora em si, pelo baptismo, e nos faz membros da sua Igreja. A partir desta incorporação, cada cristão vê reforçada a dignidade natural do seu corpo, reconhece o valor inestimável da sua consciência, elevada a santuário, onde pode encontrar-se com Deus, sente-se chamado a desenvolver todas as suas capacidades, a estar disponível para servir os outros à maneira de Jesus Cristo e a ser peregrino de um futuro já saboreado em gérmen, mas aberto à plenitude definitiva.

     A grandeza do corpo na cultura semita está na união indestrutível entre as suas diversas dimensões. Corpo significa pessoa inteira, capaz de acção e de relação, e não mero indivíduo solitário, nem apenas a sua indispensável componente carnal ou material. Não há existência humana sem corpo, nem mesmo depois da morte. Então, será corpo espiritual; agora é corpo de “carne e sangue” (1Cor 15,50). É sempre o homem/mulher que conserva a sua identidade pessoal.

     A cultura actual “afunila” o sentido da pessoa na sua dimensão corporal e a tudo submete os cuidados de a manter com saúde e beleza. O horizonte cristão é muito mais vasto e comporta aquela dimensão integrada no todo que é a pessoa: seu físico e espírito, sua história e eternidade, sua realização e aspiração, sua individualidade e sociabilidade, sua finitude e plenitude, sua autonomia e obediência, sua vida e morte na esperança da feliz ressurreição que, desde já, vai saboreando.

     Jesus fala-nos, hoje, do corpo humano e do seu sentido profundo que se capta melhor, tendo em conta o episódio que protagoniza no templo de Jerusalém e quer ver respeitado em todos os santuários corporais.