sábado, 28 de março de 2015

Desconcerto (in)feliz: prodigiosas faltas de paciência

 

 

  • Para quem não teve um Domingo de Ramos "com o meu"?!
  • Para quem não espera uma Semana Santa "como a minha"!?
  • Para quem não inventa novas exigências e interpretações...
  • "o" Pensar faz mal, o-não-pensar ainda pior.
  • Viver o que acreditamos: caminho pascal aberto.
  • Sem sustos apenas a Crueza da Partilha.

Pe. Pedro José  [Justiça e Paz – Aveiro]

 

Só o Amor é digno de Fé. À maneira do Filho que dorme nos braços do Pai enquanto a Mãe lê orante. Deus secular. Igreja laica. Inexistentes por (a)provar. É preciso e precioso o Silêncio de quem é dádiva pura. Como constatamos o abismo do Pecado. Somos obrigados a contradizer em nome da Amizade, com a distância de quem continua a ser fiel. O que devemos fazer e quem somos quando queremos? É-nos mostrado esse Mistério pelo nosso modo de viver.

É estranha porventura a experiência da infidelidade íntima na medida em que nos afastamos do que realmente gostamos. Começa por ser um travo doce e despreocupado e aumenta rapidamente no cansaço de construir. Paramos e dizemos que somos propriedade desconhecida. Saímos pela porta de entrada sem as pressas educacionais como borboleta recém-nascida. Tal como num domingo-de-ramos em que cada um toma a Água Benta que é capaz.

A Bíblia não fala duma criação a partir do Nada, mas sim, poeticamente, duma criação da Ordem a partir do caos, cuja origem também é Deus. Entretanto, morreu-nos o Poeta da Poesia (des)governada pela interpretação primordial e ficou-nos quase tudo sob investigação. Onde está a autenticidade do estigma individual ou social? Dom extraordinário no sigilo da unção para preparar a Morte. Impreparados por teimosia. Quem cuida dos confessores?

Desconcerto voluntário ou involuntário? O olhar do Homem e da Mulher são diferentes. Belos na união. Frágeis na relação. Secos de Desejo. Nunca aceitar nada que não possa ser partilhado. Tempo, Espaço e Forma. Apenas isto. Impor o Dever de sentar para rezar em intercessão por outrem. A encenação da Paixão como catequese viva para adultos é caminho árido mas fecundo. A via-sacra Pública na recusa de quem pede à sua porta de Casa o silenciar da pluralidade. Todos já mortificados por Descrença.

Somos uma harmonia adiada como o Pão fresco do pequeno-almoço. Alimento e remédio. Disfarçamos o melhor possível, mas nem sempre o resultado é o desejável. Apenas saber o que não se quer. A Ignorância é infinita. O Conhecimento é finito. Meninice irresponsável, com aroma de estupidez. Nem pensar! Apenas adiar o destino da simplicidade. Não vendas os livros e as atitudes. A não ser na moeda universal. Serviço abnegado. Enfrenta a acédia do assédio afectivo. Introspeção falida e mínima. Voltarei, aqui e lá, quantas vezes for necessário. Ámen?

quinta-feira, 26 de março de 2015

ENTREGO-ME NAS MÃOS DE DEUS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” são as últimas palavras de Jesus ditas na sua vida mortal; palavras que revelam a sua relação filial e confiança total, condensam o sentido de tudo quanto fez e ensinou e constituem a sua disposição final. Palavras que ficam como luz que ilumina as horas decisivas e tormentosas da existência humana, que alentam as forças debilitadas e frágeis em momentos decisivos, que deixam captar a centelha de esperança por onde brilha o despontar do futuro num amanhã aberto que parece definitivamente fechado.

Nas tuas mãos entrego a paixão que sempre me animou: a de fazer a tua vontade e de mostrar às pessoas a fonte da sua autêntica dignidade; a de revelar a tua face de Pai misericordioso e de recriar novas solidariedades humanas; a de ser um Deus de amor benevolente e criativo que se espelha nas relações sociais e no bem comum; a de alimentar um sonho belo - que livremente cada um dos que amas consinta na grandeza da sua vocação: sentar-se à tua mesa, dialogar amigavelmente contigo e com os outros comensais, constituir uma só família alicerçada na aliança que selaste na minha entrega constante à missão que me confiaste.

Nas tuas mãos entrego os sentimentos dos que me rodeiam nesta hora trágica e sofrida: os da minha querida mãe que confiei ao meu amigo João, que sempre me acompanhou com ternura e preocupação, que parece desfeita por me ver sofrer tão intensamente. Ela habituou-se às tuas surpresas. Talvez este hábito lhe dê alento e levante a ponta do véu que oculta o que me espera. E entrego também a amizade do grupo das mulheres que estão com ela. Vejo nelas a humanidade de todos os tempos, as suas lutas e canseiras, a sua aspiração ao reconhecimento da sua dignidade feminina e do sonho tão ardentemente construído de serem consideradas teu rosto maternal.

Entrego nas tuas mãos a boa vontade dos homens justos como Simão que, para me ajudar, alterou o seu caminho no regresso do trabalho e carregou também com a cruz em que me colocaram, como José meu pai legal que por mim fez o melhor: na família, na vizinhança, na sinagoga, no templo; como tantos outros aqui representados em Nicodemos e José de Arimateia. A todos os que sabem viver o masculino como a outra face do teu rosto e assumem generosamente a paternidade humana como colaboração contigo, fonte pujante de vida criativa, aqui lhes deixo o apreço e faço a sua entrega.

Nas tuas mãos entrego os que intervieram no processo que me leva à morte que se aproxima: os partidários do servilismo legal, os funcionários do sagrado religioso, os detentores do poder político e militar, os agitadores e manipuladores das multidões instáveis, os hipócritas que sentem na sua consciência uma coisa e fazem outra. Entrego-os nas tuas mãos, ó Pai, contando com a tua compaixão e misericórdia. Certamente não mediram a gravidade do que fizeram. Por isso, perdoa-lhes sem reserva.

Entrego nas tuas mãos o meu espírito apaixonado pelas crianças e seu futuro, pelos idosos como Simeão e Ana, memória abençoada do nosso povo e profecia do mundo novo que desponta, pelos pecadores de toda a espécie e excluídos de qualquer lugar social, pelos emigrantes a quem negam a legalização, pelos jovens cheios de projectos e de capacidades, tantas vezes amarrados ao que amacia as frustrações geradas pela vertigem do instante que passa. Mas ávidos de novos horizontes e de situações duradouras.

Pai, que o silêncio da minha morte seja palavra viva para todos os que amas e pelos quais entrego o meu espírito.

sexta-feira, 20 de março de 2015

POR VOSSA CAUSA

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

A causa dos outros, a nossa, é a razão de ser da missão de Jesus. Assim o afirma ele ao explicar aos discípulos o sentido da voz vinda do Céu que dizia: “Já o glorifiquei e tornarei a glorificá-l’O”. Jo 12, 20-33. Deus Pai intervém a favor do seu Filho que está perturbado pelo iminente e dramático desfecho da vida. São João, o narrador do diálogo, menciona uma série de interrogações que perpassam na mente de Jesus: “Que hei-de fazer? Pai, salva-me desta hora?” E conclui: “Mas por causa disto é que cheguei a esta hora. Pai, glorifica o teu nome”. É a hora de Deus!

A Igreja assume e professa no credo da missa – o de nicea-constantinopla – esta mesma convicção: “Por causa de nós homens e da nossa salvação desceu dos céus”. A mensagem cristã vive, celebra e transmite o sentido de tudo quanto acontece em Jesus Cristo e é confiado aos seus discípulos para realizarem. A Igreja surge como Igreja voltada para os outros, tendo como referência a humanidade e, nela, os preferidos de Deus, os sobrantes da sociedade, os sem voz e sem nome, os malditos da lei e contagiosos intocáveis, “as periferias existenciais” em todas as suas dimensões. O centro da sua instituição é a missão, a solicitude não apenas pelos pouco que ainda restam “no redil”, mas por todo o mundo que é preciso refazer – desde os seus alicerces, a fim de deixar de ser selvagem e se torne mais humano, isto é, mais conforme ao projecto sonhado por Deus, Pio XII,

Por nossa causa, Deus glorifica Jesus através dos sinais da sua vida pública: o vinho novo das bodas de Caná, a saúde recuperada do filho do funcionário  imperial, a cura regeneradora do paralítico, a multiplicação do pão partilhado, a caminhada matinal sobre as águas, a vista dada ao cego de nascimento, a vida restituída a Lázaro, seu amigo, o lava-pés aos apóstolos na ceia de despedida. São sinais claros da glória de Deus que resplandece no agir de Jesus de Nazaré e que nós somos convidados a compreender e a actualizar. Os preferidos de Deus marcam o centro da missão da Igreja, de cada comunidade cristã, de cada baptizado honrado e coerente. Avivemos a nossa fé e deixemos que a glória de Deus brilhe no nosso proceder. Que alegria e responsabilidade! 

Por nossa causa, Jesus ultrapassa a perturbação interior dos seus sentimentos e vence a tentação que, mais uma vez, o assaltava. E vai em frente. A promessa da voz vinda do céu será cumprida. Deus Pai glorificá-lo-á nos acontecimentos da paixão, morte e ressurreição. A cruz infamante faz-se cruz vitoriosa, florida. A morte aniquiladora cede lugar à vida nova do ressuscitado. O servo desprezado e aniquilado é agora credenciado como o Senhor da glória. A sua opção pelos “feridos da vida” é definitivamente confirmada e elevada a credencial do amor de Deus Pai pelo mundo. Que felicidade poder ver estes sinais no seu sentido profundo! 

Também nós, como outrora, alguns gregos, “queremos ver Jesus” e dirigimos o nosso pedido aos sucessores de André e Filipe, à Igreja e a todos os que nela exercem funções de responsabilidade. 

Queremos ver e glorificar Jesus na pessoa que se cruza connosco, nos caminhos da justiça e da solidariedade, na prática da misericórdia e do perdão, na doação generosa que, morrendo, gera vida nova, como o trigo lançado à terra. A sementeira da primavera antecipa e garante a futura seara de pão abundante para todos.

sexta-feira, 13 de março de 2015

A REVOLUÇÃO DA TERNURA

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Deus, no seu filho Jesus, convida-nos a viver a revolução da ternura – afirma o Papa Francisco.(EG 88). Este convite constitui uma das constantes mais assertivas do Evangelho. Jo 3, 14-21. Nicodemos, velho mestre da Lei judaica, anda inquieto no seu coração e vai ter com Jesus, o jovem mestre que começa a ser conhecido, a ter nome público. Ele, trazia a letra da Lei consigo. Jesus vai desvendar-lhe o espírito da Lei. E João, o autor da narrativa, constrói uma rica conversa para dizer quem é Jesus Cristo, o filho unigénito de Deus.


“Deus amou de tal modo o mundo que entregou o seu Filho Unigénito” – afiança o novo mestre. Que ousadia por parte de Jesus! Que surpresa não provocaria no espírito perturbado de Nicodemos. O diálogo prossegue com novidades cada vez mais interpelantes.


O amor de Deus é um amor de entrega, de doação, de misericórdia, de perdão, de libertação, de ternura para com o mundo, para com todos. Embora o ser humano tenda a projectar os seus sentimentos em Deus – a ira, o castigo, a indiferença, a violência … e, a partir daí, configurar o modo de ser e de proceder divino –, Jesus “vai por outro caminho” e apresenta o Deus do amor como fonte e modelo do ser e do agir humano. Somos espelhos e agentes do amor divino, da sua ternura e misericórdia, da sua verdade e sabedoria. Vivendo em coerência e fidelidade, somos salvos. É certeza de Paulo escrita na carta aos cristãos de Éfeso.


O Filho entregue – Jesus – mostra-nos em atitudes concretas a ternura de Deus: assume a nossa humanidade frágil na encarnação, vive na família humilde de Nazaré, convive amigavelmente com os vizinhos, frequenta a sinagoga e peregrina ao templo, aprende a trabalhar, reza a Deus, seu Pai, acolhe quem o procura, vai ao encontro de quem está em necessidade, prefere os empobrecidos e marginalizados, anuncia a novidade do Reino que está em curso, perdoa com gestos de misericórdia, deixa-se tocar pelos “malditos” da lei, estende a mão em atitude de bênção e cura, abraça, chora, admoesta, consola, realiza uma ceia de despedida com os amigos e manda-lhes que a façam em sua memória, levanta-se, carrega a cruz, sobe ao calvário, agoniza e morre, visita as “zonas sombrias do nada”, ressuscita e mostra a vida nova aos discípulos, envia-os a anunciar o modo original de Deus em que nos quer envolver.


Este amor de doação e ternura que se parte e reparte e faz migalhas – como sacramentalmente acontece na celebração da eucaristia – gera o homem novo, é garantia de eternidade já presente na fragilidade humana, constitui caminho e abre horizontes a quem pratica a verdade e se aproxima da luz.


A revolução da ternura está em curso. É de todos e para todos. Ninguém fica de fora, a não ser que se autoexclua. “Todo o ser humano é objecto da ternura infinita do Senhor” – lembra Francisco mais uma vez. Fazer este percurso quer dizer: deixar a indiferença paralisante, passar do medo à confiança e da aparência à realidade, ver “na aragem quem vai na carruagem”, isto é, ir além dos rótulos e considerar sempre a pessoa na sua dignidade inviolável, vencer distâncias e fazer-se próximo, assumir o amor de doação benevolente como principal critério de vida e acompanhar quem quer caminhar para situações mais humanas. “Se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isto já justifica a entrega da minha vida” – garante o Papa.


A serpente do deserto – sinal erguido por Moisés para servir de cura aos caminhantes fugitivos do Egipto – é agora a cruz do Calvário abraçada por Jesus Cristo para todos os peregrinos da vida que se deixam iluminar pela verdade e atrair pelo bem. Aceitemos este sinal. Vivamos na confiança radical da ternura sem limites do nosso Deus

segunda-feira, 9 de março de 2015

Sobre o custo da quaresma

 

Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

Quaresma é não desistir de mudar. A mudança é uma realidade vital. Nascemos e só paramos de mudar ao morrer. Aí se aloja o nosso erro «original» ao pensarmos que ao morrer as mudanças terminam. Mudamos de vez para o seio da Criatividade Divina. Quaresma é o tempo da mudança forte que se alimenta da fraqueza. Não é um tempo gonzo. É um tempo de liberdade.

Quaresma é Tradição. O jejum em qualquer modalidade. A oração em qualquer devoção. E a caridade que dispõe de qualquer meio ao seu alcance para ser solução. Os três juntos de preferência, ou separados, por estratégia tipo: “deposite no nosso banco e o dinheiro continua seu”. Quaresma é o espaço de sinergia pelas raízes.

Quaresma é a Vida! Deus ri. Deus sorri. Todos somos uma anedota bem contada. Nossos pecados são impróprios, horríveis e risíveis. Medo de confessar o quê!? Quando dou o primeiro passo: o Céu rasga as nuvens... Como posso negar a mim mesmo mais uma ocasião de Graça!

Quaresma é dizer numa discussão de futebol, finanças, política e religião: «vamos ver quem perde a valer!» Explicar aquilo que se faz sem precisar de explicação. O que eu não preciso para mim, faz falta a quem precisa: roupa, comida, atenção, tempo, etc.

Quaresma é dizer a si mesmo perante os olhos dos outros: «é normal: esta pessoa e este problema são diferentes». Aprender de novo a usar o botão que desliga a TV (irrealidade…); o Telemóvel (ubiquidade…); o iPad (virtualidade…); e o Ai-Tudo-o-Resto (somos deuses de barro…).

Quaresma é aceitar que nada importa além do Amor primeiro. A manhã que nunca acaba no sabor do café quente. A tarde em que é sempre possível ouvir sem pressa. O silêncio da Noite, depois de viver o Dia a um ritmo louco. Inventar tempo para visitar um doente. Brincar com uma criança. Dar lucidez perante as dúvidas e repor a competência nas hesitações.

Quaresma é reabastecer-se espiritualmente na Fonte da oração, do jejum e da caridade. Tempo de promoções grátis e saldos à medida dos nossos bolsos e olhares consumistas. Abrir o frigorífico e dizer: não tenho tanta fome! Passar diante da montra e dizer: não faz falta! Olhar a carteira e pensar: ainda sou capaz!


Quaresma é cuidar da saúde espiritual e quem ganha é o Corpo. Dormir melhor com a consciência do dever cumprido, imperfeitamente, de modo a ser mais Feliz. Quaresma é, sobretudo, a Caridade “doméstica” (cuidar do próximo que é próximo) até ao limite do global: nada me é indiferente (cuidar do próximo desconhecido por Amor). Podia ser eu a lá estar!


Quaresma é o Deus oculto; que se faz página em branco; torna-se quase despercebido; atraiçoado por deslealdade; amargo fruto da nossa desumanização; que nos segrega baixinho «Amo-te, como se fosse o primeiro dia da tua vida!». Não desesperes: «a semente nunca vê a flor». «A vida também se lê». Eu escrevo direito por linhas tortas e vazias, as que tens e és.

Quaresma é o Tempo de tocar, ouvir, dar as mãos, sentir e consentir, restituir o perigo do Exemplo: como a educação fundamental. Que mensagem estou a transmitir? «Bom: só a fonte da benevolência: o lava-pés de Jesus Cristo». Sirva-se à vontade da quaresma, ela nunca lhe fará mal, bem pelo contrário! Acredite outra vez!

quinta-feira, 5 de março de 2015

JESUS, A PESSOA E O MERCADO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Jesus chega ao templo de Jerusalém e fica escandalizado com o que vê. Jo 2, 13-25. A casa de oração por excelência havia sido transformada em centro comercial, em banca de câmbio, em lugar de disputas de interesses. O mercado desregulado impunha-se. A exploração dos peregrinos, sobretudo dos pobres, era moeda corrente. A acumulação ilícita de bens económicos por parte dos dirigentes,  especialmente dos familiares e protegidos do sumo-sacerdote, fazia parte das regras. Jesus, fiel ao projecto de Deus Pai que antepõe a pessoa a qualquer outro bem, dá largas à sua indignação por tantos atropelos à dignidade humana e desvios de interpretação dos Mandamentos divinos.


A “operação limpeza” tem sobretudo um alcance simbólico. Os judeus ficam estarrecidos e pedem-lhe explicações. E começa um diálogo que parece de “surdos”, com linguagens cruzadas e sem entendimento possível. Os próprios discípulos só mais tarde, após a ressurreição, conseguem captar algo do que se tratava.

Que cenário de referência para os tempos de hoje! Que desenho tão actual para muitos intervenientes políticos e religiosos! Que afirmação mais contundente sobre o valor da pessoa em relação ao mercado livre e globalizado! Que exemplo de coragem e de intervenção num “mar de indiferença” e numa ilha de ganância que se alarga como os tentáculos do polvo!


Novo chicote, precisa-se!  O gesto de Jesus evoca o chicote do Messias, segundo uma expressão rabínica e constitui um símbolo da chegada dos tempos messiânicos: Pela purificação das intenções dos corações e pela reposição da função das coisas que, necessariamente, comportam aflição e sofrimento. 

O gesto de Jesus tem um grande alcance profético. Atinge o “coração” da ordem estabelecida legitimada com o recurso à tradição. Centrada no sagrado, esta ordem tem, no Templo, a sede do poder económico, pelo comércio que nele se faz; do poder político, já que nele se reúne o sinédrio que toma decisões; do poder religioso, uma vez que nele se sacrificam os animais para a oferenda. Com os abusos transforma-se de casa de Deus para a oração, em mercado para os negócios. Este é o “nó górdio” que Jesus pretende desatar, de modo que a casa de Deus seja casa do seu povo, reunido em assembleia de irmãos, que celebra o mesmo culto e escuta o mesmo ensinamento. Sem este centro, que solidez pode ter a organização político-religiosa imperante?! A reacção de defesa é imperiosa, normal.


As autoridades pedem-lhe um sinal comprovativo da sua acção demolidora. Querem embaraçá-lo e dispor de mais um argumento para o incriminar. Jesus responde, adiantando o erguer, em três dias, do Templo que ia ser destruído. Os judeus entendem o sentido literal da afirmação de Jesus – o templo de pedra, a glória da Cidade Santa. E reagem em consequência. Jesus refere-se a outro santuário – o do seu corpo – que havia de ser erguido na ressurreição, após três dias de paixão e sepultura. Morte e ressurreição surgem como caminho a percorrer para chegar ao reconhecimento do corpo humano como santuário de Deus. E Jesus ao fazê-lo, presta o maior serviço da sua missão, realiza a suprema manifestação da sua doação.

O corpo, destruído pelas autoridades, mas ressuscitado pelo Pai, é o novo Templo, em que habita Deus, é Jesus Cristo que nos incorpora em si, pelo baptismo, e nos faz membros da sua Igreja. A partir desta incorporação, cada cristão vê reforçada a dignidade natural do seu corpo e reconhece o valor inestimável da sua consciência, incansável peregrina da verdade, sempre aberta a um futuro novo já saboreado em gérmen no presente.

A cultura actual “afunila” o sentido da pessoa na sua dimensão corporal e a tudo submete os cuidados de a manter com saúde e beleza. Jesus fala-nos, hoje, do corpo humano e do seu sentido profundo que se capta melhor, tendo em conta o episódio que protagoniza no templo de Jerusalém e quer ver respeitado em todos os santuários corporais.