domingo, 26 de abril de 2015

Sobre o pastor “exlex”, fora-da-lei, diríamos nós?

 

Pedro José | Justiça e Paz – Aveiro

 

Meditação: Evangelho de João 10, 11-18 (especialmente, vv. 19-21).

Sobre o modo de combater o mal encoberto e a irresponsabilidade do fácil: o «bom» pastor teimosamente propõe a prevenção do que falta; não sou capaz de o fazer agora?

Sobre a riqueza inútil e o desperdício evitável: o «bom» pastor desinteressadamente incentiva a partilha de recursos, a salvaguarda da memória e a qualidade de vida; não posso funcionar doutro modo?

Sobre a doença do espírito e as dores do corpo: o «bom» pastor diariamente não pode fugir, renova empréstimos sem prazo e dando a sua vida em cada gesto mínimo, oferece-se; deixa que faça isso na tua vez?

Sobre o medo, a inexperiência, a deslealdade e a vaidade: perante as nossas medidas - o «bom» mercenário sabe reagir melhor que o «mau» pastor - o «bom» pastor pacientemente acredita no milagre da pessoa humana; podemos subsistir sem o perdão?

Sobre a liberdade para, a caridade diligente e amizade silenciosa: o «bom» pastor não sabe dizer as respostas…, as soluções… ou dar colo…; cada caso e cada circunstância, oportunamente, caminhando atrás de…, ao lado de…, ou na frente de…, pelos atalhos errados, longos e cansativos; não fecundam as metas inesperadas?

Sobre os jogos de poder e as intrigas da inveja: o «bom» pastor involuntariamente sem ser ingénuo, serve a todos, alerta com inteligência e baixa-se para não sofrer de vertigens; não nascemos para a idolatria mas para aprender a servir?

Sobre o modo de cuidar da fome e da sede: o «bom» pastor serenamente olha para as coisas que não existem e pergunta porque não semear prioridades e não resultados?

Sobre a distância cada vez mais perto do céu: o «bom» pastor convida, e insiste sem violência, sai da sua pastagem à espera de quem queira tomar o rumo da sua vida e apreciar a beleza justa da criação - o pastor ri de si e acredita que Deus sabe de si -; como cuidar das verdadeiras necessidades?

Palavras semelhantes e mais importantes que estas palavras provocam nova divisão entre as pessoas de ação e reflexão. Muitas dizem: está excêntrico, deprimido e louco. Porque ainda tem audiência e aplausos? Outros dizem: essas palavras não são de um enlouquecido; pode um excêntrico abrir os olhos aos cegos?

quinta-feira, 23 de abril de 2015

SEGUIR CRISTO, O BOM PASTOR

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

“Eu sou o Bom Pastor” – afirma Jesus, fazendo o seu autorretrato com os traços mais marcantes da sua identidade. Recorre a uma metáfora muito conhecida dos ouvintes, sobretudo a partir do profeta Ezequiel, em que se espelha a relação de Deus com o seu povo. Aproveita a oportunidade surgida com a tensão provocada pelos fariseus durante a cura do cego de nascença. Repete várias vezes esta declaração que contrasta fortemente com o proceder dos pastores mercenários, que usam o nome e assumem a função, mas não a desempenham com honradez, sobretudo quando o perigo ameaça.

Na metáfora, o perigo reveste a pele e a fúria do lobo esfaimado; os mercenários são o rosto dos fariseus e de outros líderes; o rebanho é o povo que Deus ama e confia aos seus encarregados de o guiarem nos caminhos da vida; o pastor bom e belo é Jesus que, segundo João o narrador da cena, se apresenta desta forma clara e solene. Jo 10, 11-18. Também a iconografia paleocristã reproduz a imagem de Jesus com uma ovelha aos ombros, sinal da consciência dos cristãos na sua força representativa. E hoje, apesar da mudança cultural, mantém uma interpelante mensagem.

O texto litúrgico selecionado para este domingo faz parte de um conjunto mais vasto dedicado pelo evangelista à catequese sobre Jesus e realça a sintonia da sua missão com o projecto de Deus Pai. Jesus é o pastor definitivo que cumpre a promessa feita há séculos e se mantém em aberto. A solicitude de Deus pelo seu povo manifesta-se plenamente em Jesus, o bom pastor. Ele é a solicitude de quem guia, cuida, protege, reúne, dá a vida, conhece pelo nome, atrai os dispersos ao redil familiar e acarinha com ternura e desvelo.

Que beleza de modelo nos é proposto! Que vigor de apelo nos é feito! “Atreve-te a seguir Jesus, o Bom Pastor”. E o encanto do ideal deixa de ser apenas sonho adiado e faz-se realidade premente, transformando-se em força de intervenção humanizante.

Em Jesus, a vida é dom que se entrega voluntariamente. A melhor maneira de a conservar é fazê-la doação, livre e generosa, ainda que sofrida e crucificada. O amor constitui a força motriz da doação. O egoísmo surge como o maior inimigo da vida, a grande negação da humanidade. O conforto do bem-estar material limita drasticamente o horizonte da dignidade humana integral a que todos estamos chamados. O isolamento imposto amarfanha a tendência natural e educada para a relação solidária, fonte de vitalidade criativa. Matar a vida, em qualquer das suas modalidades, é fazer do jardim da esperança a florescer num mundo novo um cemitério de cadáveres ressequidos e de cinzas cremadas. Dar a vida por amor é a afirmação do melhor que em nós existe como foi em Jesus, o Bom Pastor.

A relação do pastor com as ovelhas é de conhecimento mútuo, de escuta amiga e de pertença recíproca. São um só rebanho. Vivem em clima familiar. Envolve a pessoa toda nas suas múltiplas dimensões: afectivas, intelectuais, relacionais, transcendentes. Esta relação interpessoal faz desabrochar as energias humanas enriquecidas pela graça baptismal e habilita cada cristão para ser um pastor que, a seu modo, assume a missão de Jesus Cristo, o Bom Pastor.

Ser pastor com o estilo de Jesus, começando na família e alargando progressivamente até abranger todos os espaços da vida em sociedade e na Igreja. “Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo do imanentismo, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” – garante o Papa Francisco na Alegria do Evangelho, nº 87.

sábado, 18 de abril de 2015

RECONHECER JESUS RESSUSCITADO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Os discípulos de Emaús, após terem reconhecido Jesus, partem apressados e cheios de alegria para a cidade, encontram o grupo dos apóstolos reunido e narram a experiência gratificante vivida durante a caminhada. É a primeira vez que estão todos em comunidade. É a primeira vez que o “partir do pão” surge como momento especial de reconhecimento do Ressuscitado. É a primeira vez que se evoca a releitura da Sagrada Escritura como critério para a compreensão da história e reposição da verdade,

O acesso à experiência da ressurreição de Jesus dá-se, segundo Inácio de Loyola, pelo reconhecimento dos seus “santíssimos efeitos”. São estes que constituem a “janela” do espírito humano iluminado pela fé. São estes que provocam o encontro feliz que abre o entendimento do crente e o leva a identificar o Senhor. São estes que alargam os horizontes e lançam em maior profundidade as razões da esperança pascal.

Os efeitos da ressurreição manifestam-se na vida humana, na relação entre os membros da sociedade, na união fraterna dos cristãos, na partilha de bens e na organização da economia solidária, na política ao serviço do bem comum, na escuta atenta da Palavra e na sua transmissão dinâmica, na misericórdia ( dar o coração) aos míseros, aos que necessitam de tudo para recuperarem a dignidade roubada e terem uma vida boa/feliz.

Karekin II, patriarca da Igreja Apostólica Armênia, cuja sede é na Armênia, em Echmiadzin, anuncia que, a 23 de Abril próximo, vai proclamar o martírio de um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, mortos em 1915 e nos anos seguintes. "Cada dia de 2015 será um dia de lembrança e de devoção ao nosso povo, uma viagem espiritual ao memorial dos nossos mártires", afirma. Esta voz autorizada vem juntar-se à de historiadores sérios e à do Papa Francisco que recentemente designou  a vontade de contrariar os factos pelo Governo Turco e outros interessados por “genocídio do silencia”. Reler a história, dar voz às vítimas abafadas, fazer ressurgir o seu bom nome e a sua dignidade, reconhecer as “hediondices” escondidas pelas esponjas de ideologias nefastas e trazê-las “a lume” público, constitui sem dúvida um rebento da primavera pascal do Senhor ressuscitado.

Entender a Escritura é apreciar a vida com a sabedoria da cruz florida, compreender a trama dos factos e o sentido que comportam à luz das atitudes de Jesus Cristo confirmadas por Deus Pai no acontecimento único da ressurreição. É saber situar-se na realidade, aprender a viver com honradez, a afrontar os problemas sem subterfúgios, acreditar no valor do presente onde se faz a sementeira do futuro desejado.

Jesus está vivo. Importa descobrir os sinais da sua presença discreta, mas germinal de energias novas. Está vivo nos gestos de amor e de perdão, no acolhimento das diferenças legítimas e sua valorização, na paz que é fruto da justiça solidária, no empreendedorismo criativo pautado pela ética humanista, no exercício do poder feito serviço generoso em prol do bem de todos, na assembleia dominical que celebra a eucaristia.

A sabedoria da vida germina e cresce no jardim do Ressuscitado. Vale a pena fazer esta experiência humilde e libertadora.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

METE A TUA MÃO NO MEU LADO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Jesus toma a iniciativa de provar aos discípulos e, por eles, a todos nós que não é um fantasma pascal, mas um ser humano integral ressuscitado. Recorre, segundo o evangelista narrador -Jo 19, 20-31-  a várias estratégias e recursos para se manifestar e deixar reconhecer: a Madalena aparece como jardineiro e tem com ela um diálogo enternecedor; aos discípulos de Emaús como caminhante anónimo e acompanha, conversa e explica de tal modo o sentido das Escrituras que lhes aquece o coração arrefecido pelos acontecimentos trágicos de Jerusalém; aos pescadores cansados no mar da Galileia como mestre que reorienta o trabalho e prepara a refeição que partilha com eles ao regressarem da faina; aos discípulos-apóstolos aferrolhados em casa com medo dos judeus como Alguém surpreendente que se identifica exibindo as cicatrizes das feridas da sua paixão e crucificação, depois de os saudar na alegria da paz e enviar em missão de perdão, depois de lhes dar o Espírito Santo do revigoramento e da misericórdia. Estes factos são mencionados para comprovar o propósito claro de Jesus; outros aconteceram e não chegaram a ser registados; e muitos outros estão a acontecer, embora nem sempre identificados e anunciados. 


As cicatrizes das feridas ficam como marca da identidade de Jesus Cristo. A prova definitiva surge com o céptico Tomé, ausente do grupo naquele dia. “Vimos o Senhor”, dizem-lhe os colegas, cheios de alegria. O peso do drama do Calvário era demasiado grande para acreditar num simples testemunho. As sequelas faziam-se sentir. A dispersão de uns, como os discípulos de Emaús, a lentidão mental de outros para compreenderem o alcance do acontecido, a dúvida fundada de Tomé – ele que na visita a Lázaro, estava disposto a morrer com Jesus - as exigências postas para a sua superação constituem amostras sérias da novidade inaudita anunciada.


“Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado e não sejas incrédulo, mas crente” – diz Jesus em amoroso convite e terno apelo com um “ar” de suave censura. Tocar, ver, aproximar e meter são os passos indicados para superar a dúvida e abrir-se à fé. A referência fundamental é a cicatriz das feridas que constituem a marca da identidade do crucificado-ressuscitado. Sem elas, Jesus fica desfigurado e a sua missão adulterada. Sem elas, o anúncio jubiloso dilui-se em confusas ondas sonoras que dessintonizam o ritmo harmonioso do Evangelho. Sem elas, a Igreja convocada para viver o Jubileu da misericórdia, deixa secar a fonte do amor que lhe dá origem, abrangência e sentido. Sem elas, a acção pastoral das comunidades cristãs e o apostolado social dos leigos perde a sua matriz e desvirtua a sua finalidade: Que toda a realidade humana se instaure em Cristo, o crucificado-ressuscitado.


As feridas da paixão de Jesus continuam nos “feridos da vida” em todas as situações existenciais: em crianças violentadas e mal-amadas, em casais instáveis e amargurados, em famílias reconstruídas sem sucesso, em desempregados sem horizontes de trabalho estável, em pessoas doentes desamparadas, em perseguidos e torturados por defenderem a sua consciência e a sua fé, em espoliados da dignidade humana, silenciados à força e “varridos” da memória colectiva.

Jesus está nos espaços onde a vida é espezinhada como foi a d’Ele. Aqui mostra a sua identidade. Aqui a pergunta de Pilatos: “Que é a verdade?” e a sua declaração: “Eis o Homem” encontram resposta adequada no gesto e na oração de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus”. Querer vencer as dúvidas e chegar à verdade é aceitar a indicação preciosa que as feridas vistas e tocadas oferecem e onde se descobre o amor que as sustenta e lhes dá sentido solidário e libertador.

domingo, 5 de abril de 2015

Sobre o custo da páscoa: 10 disposições.

 

Pedro José Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

[1.] Páscoa, fazer festa ”Vale a pena celebrar a Vida quando o Deus da Vida não lhe é alheio, quando os dias que despertam e adormecem caminham de olhos erguidos para Deus, quando a certeza da Plenitude anima a luta da construção…Vale a pena celebrar a Vida porque cada vez que o fazemos, Deus faz festa connosco! (Rui Santiago-Cssr, Dar Sentido, Diocese de Aveiro, 2015, p.48).

[2.] Páscoa, essa noite de vigília memorável. Voz 1 diz: “Há um ano atrás, por esta hora estavas na minha casa acabado de receber boas novas de… Hei-de sempre lembrar de mais um gesto de amizade nessa noite memorável”; Voz 2 rediz: “Ando desconcertado nas respostas… graças reconhecidas por recordares a Vida que renasceu “nessa noite memorável” e renasce hoje nessa Verdade que procuramos em comum”.

[3.] Páscoa, êxodo prisioneiro que chega à periferia livre. “A nova liberdade é velha, é liberdade absoluta na roupagem da época; pois, conduzir sempre uma vez mais, apesar de todas as astúcias do espírito do tempo, ao triunfo da liberdade: eis o sentido do mundo histórico” (Ernst Jünger, O Passo da Floresta, Edições Cotovia, 1995, nº 31, p.88).

[4.] Páscoa, Visita Pascal porta a porta. “Deus visitou-me ao cair do dia e dos anos, para me proteger das sombras e devolver o chão aos pés e os sonhos à juventude. (…) Deus visitou-me quando o tempo interrompeu a estrada e fez para o cortejo dos silêncios adiados e dos discursos estéreis” (Frei Manuel Rito Dias, Cânticos da Mãe Terra, Difusora Bíblica, 2011, p.102).

[5.] Páscoa, santidade e humanismo”. “A tarefa do cristão não é simplesmente a de se preocupar com a justiça social, a ordem política e os negócios justos. É muito mais profunda. É uma questão da própria estrutura da sociedade e da herança cultural do homem. A tarefa de cada cristão hoje é a de defender e restaurar os valores humanos básicos, sem os quais a graça e a espiritualidade terão um sentido prático mínimo na vida do homem ” (Thomas Merton, Vida e Santidade, Editorial Franciscana, 2007, pp.146-147).

[6.] Páscoa de Jesus e nossa. “O Ressuscitado da Páscoa arrasta-nos a partir de agora na esteira da sua vida nova. A sua Páscoa é chamada a tornar-se a nossa. Ela impele-nos a sair dos nossos túmulos, a abater os muros que nos tornam prisioneiros, a recusar a fatalidade dos acontecimentos. A ressurreição é a vida de Deus em nós” (Jacques Gaillot, “Páscoa: o sol da vida” in Carta, 01-04-2001, http://www.partenia.org/partenia_1996_2006/pt/l_0204pt.htm, acesso: 04-01-2015).

[7.] Páscoa, mudança para aproximar. “Vale aqui este princípio fundamental: exigir exactamente a mesma coisa, sob condições de vida totalmente diferentes, significa exigir uma coisa totalmente diferente” (Bernhard Häring, Última Palavra de Profeta, Editorial Perpétuo Socorro, 2000, p.137).

[8.] Páscoa, observar o óbvio.”É certo que não se pode viver uma Quaresma sem Páscoa, mas também não se pode viver uma Páscoa sem a Quaresma, sem a Paixão. Porque o que é óbvio, por ser óbvio, precisa de ser relembrado e recordado. Porque o que é importante, por ser importante, necessita de ser dito e redito muitas vezes” (In Paschalis Atrium – Exposição de Arte Sacra, Sé de Aveiro, de 28/3 a 12/4 – 2015).

[9.] Páscoa, viver o sofrimento à luz da Cruz Pascal. “Qual é a luz radical que a paixão de Cristo a sua morte e ressurreição, traz ao sofrimento? É que este, vivido em amor e por amor, encontra o seu sentido. E essa é a chave do segredo. (…) Assumindo a Cruz pelo amor aos outros e ao Pai, Jesus matou a morte e abriu-nos o caminho da ressurreição” (Vasco Pinto Magalhães, Se Deus É Bom, Porque Sofremos? Um Testemunho, Edições Tenacitas, 2015, p.61).

[10.] Páscoa, quando o nosso tempo é o futuro. “Acreditar na Ressurreição do Senhor é viver a esperança do Reino de Deus, que é feito de novidade, de surpresa e de plenitude. Se muitos se angustiam e ficam paralisados com medo do futuro, não é precisamente porque não conseguem conceber um futuro diferente do presente que agora vivemos?” (Pe. Manuel Trindade – SMBN).

sexta-feira, 3 de abril de 2015

VIDA NOVA: A CORRIDA DA PÁSCOA

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

A manhã do primeiro dia da semana deixa transpirar um ambiente novo, segundo narra São João. Jo 20, 1-9. Ao desânimo do Calvário sucede o ardor diligente de Madalena, de Pedro e do discípulo que Jesus amava. Ao silêncio da morte sofrida responde o hino vibrante da vida nova. Ao túmulo fechado pela pedra corresponde agora o sepulcro aberto, “escancarado”, vazio pela ausência de quem lá tinha sido depositado. A desolação dolorosa e mortiça dá lugar à curiosidade efervescente avivada pela saudade. 

A escuridão do espírito começa a dissipar-se pela luz da aurora nascente. A vontade deixa-se moldar pelo ritmo do coração. E um novo movimento acontece: a corrida da Páscoa que iniciada em Jerusalém comporta um dinamismo envolvente de todo o mundo e de toda a história. O Senhor ressuscitou. A morte foi vencida. A causa defendida por Jesus é oficialmente confirmada por Deus. O presente abre-se a um futuro radioso que se antecipa. A esperança germina e floresce em situações humanas concretas. As flores da vida nova estão por aí, não as vedes? E não conseguis do que vedes ao que não vedes?

Os protagonistas da narrativa de João constituem o rosto de quem faz este percurso. A corrida física ao túmulo manifesta a sua corrida interior e espiritual: Desinstalar-se e pôr-se a caminho, acolher dúvidas e procurar respostas, remover preconceitos e identificar sinais, deixar-se guiar pelo coração e iluminar pela razão, aceitar a nova visão que desponta com a fé inicial, crer nos ensinamentos das Escrituras, reconhecer a presença de Jesus ressuscitado no encontro fraterno e celebrativo, partir em alegre e criativa missão de anunciar a Boa Nova que dá sentido pleno a toda a vida.

As sementes da Páscoa germinam, hoje, na alegria de viver, na paciência da esperança, no amor de doação, na ousadia da confiança, na relação próxima do voluntariado, no esforço abnegado dos empreendedores solidários, nas ditosas mães e pais de família, no serviço respeitoso e criativo dos prestadores de cuidados, na participação consciente das celebrações litúrgicas e sacramentais, na sabedoria dos idosos, na coragem dos mártires que dão vida a gestos e atitudes que pareciam ter passado definitivamente. 

A nova Páscoa abrange toda a criação. A natureza, nas suas múltiplas facetas, multiplica e exibe os seus sinais de festa e reveste o seu “traje de gala”. A primavera dá-lhe brilho e cor. Junta a sua energia vigorosa à vida nova de Jesus, fruto da doação total. Canta de esperança e celebra um presente florido que anuncia um futuro jubiloso. A vida triunfa da morte como a primavera supera o inverno. Os sinais festivos multiplicam-se um pouco por toda a parte e os corações humanos abrem-se ao suave aroma pascal. O amor mostra-se em toda a sua beleza. As boas festas pascais – que nos damos uns aos outros – expressam o ritmo dos nossos corações em sintonia com a primavera da natureza e com a onda entusiasmante do Senhor ressuscitado. E alimentam a vida nova que a corrida da Páscoa nos faz encontrar e saborear. 

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Passagens

 

M. Oliveira de Sousa  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

Cada dia que passa é uma nova passagem vencida, uma “passagem passada”! Não faltam referências que ajudarão a explicitar a multiplicidade de situações em que é possível fazer alusão a passagem.
Contudo, há coisas que não passam, outras que custam a passar. Há ainda o que nunca deveria passar e, claro, o que não deveria existir!
Nestes dias é demasiado evidente que o centro de referência é a Páscoa, o tempo propício para a memória do que não se pode ignorar, sem saudades das cebolas do Egipto (em analogia à passagem da história da humanidade inaugurada nas fundações judaico-cristãs, que o livro dos Números refere em 11,5, porque ainda há muitas cebolas!) nem arrogância de maiorias no seio das sociedades deste tempo.
É urgente que se passe de um tempo de vulgaridade para uma atitude de compromisso desinteressado. Mas também há por aí ares de tanto compromisso cristão que não passa de oportunismo da velha cristandade.
É urgente que se passe da ignorância para a leitura atenta dos sinais dos tempos.
Porque, como nos sugere a Comissão Nacional Justiça e Paz, não podemos ignorar os nossos irmãos perseguidos e mortos que cometeram o “pecado” de se assumirem como cristãos. É que “se um membro sofre, todos sofrem com ele”.
Não podemos ignorar, também, os fiéis muçulmanos e de outras religiões que também são vítimas do extremismo fundamentalista.
Não podemos ignorar que o templo de Deus somos nós mesmos e que ao sermos violentados e perseguidos é também o Senhor que Sofre.
Não podemos ignorar o apelo do Papa Francisco para “que esta perseguição contra os cristãos, que o mundo procura esconder, acabe e haja paz”.
A Comissão Nacional de Justiça e Paz apela a todos os cristãos e pessoas de boa vontade para que acompanhem os nossos irmãos que sofrem estes horrores e perseguições e para que não os ignorem. Neste tempo de oração mais intensa em que recordamos a Paixão e Morte de Jesus Cristo, sejamos firmes na Oração, saibamos levar a Esperança a quem dela necessita e pratiquemos a nossa Caridade através do apoio a todos aqueles que, no terreno, estão junto dos violentados e perseguidos.
Que passe rápido o que deve ser passado!

o milagre da partida

 

Pedro José Correia |  Justiça e Paz – Aveiro

Começo pelo mais difícil. As lágrimas contidas de quem não esteve fisicamente no lugar-da-partida. Tudo o que foi sentido e vivido para chegar até aqui. Racionalizo e tento digerir as ideias de Marc Augé, sobre os não-lugares, tomando então o Aeroporto Francisco Sá Carneiro como o «local» fecundo de memória e de identidade, para-partir-de-novo. No concreto, a partida de duas jovens, a Diana e a Sofia, que pertencem aos “Leigos Boa Nova” (LBN), que são um grupo de voluntários cristãos, membros da organização não-governamental de desenvolvimento, “Obra Missionária de Acção Social” (OMAS), instituição particular de solidariedade social criada em 1992.

Partiram hoje, pela manhã, rumo a Moçambique, no dia 1 de Abril de 2015. Isto não é mentira… não é a verdade do dia das mentiras!? Deveria abrir a grelha noticiosa do telejornal! É a Verdade encarnada em rosto e histórias de vida, que é sempre simples, sempre sacrificada, e sempre generosa, quando se existe para servir os outros. No não-lugar do aeroporto, onde tantos jovens no nosso país, neste momento difícil, partiram e regressam, para partir novamente. Estas jovens partiram para realizar um projecto de voluntariado missionário por dois anos. É a segunda vez nas suas vidas pessoais, de forma mais permanente.

Cruzei-me com elas na comunidade paroquial da Chapadinha, no Maranhão-Brasil, onde as vi, entre muitas actividades e serviços, pôr de pé a Pastoral Penitenciária, fazendo da Prisão – isso sim também «não-lugar», não apenas da nossa hiper modernidade - dignificando a Pessoa presa. Da sua coragem pessoal, aliando vontades de várias pessoas, até à acção de ternura e de justiça, onde não existiam. Milagres possíveis acontecem ordinariamente. Para mim foi um verdadeiro “murro no estômago” no meio de uma pastoral conformada e acomodada. Hoje na sua partida a criatividade e a competência surgem reforçadas, e voltarão a fazer revoluções pacíficas, sobretudo, evangélicas.

No endereço digital desta associação de leigos podemos aprofundar sobre a importância deste testemunho de serviço: “O voluntariado enraíza-se na caridade e busca a dignidade e o bem do “outro” que se encontra em situação de necessidade. Este “outro”, na perspetiva cristã, não é apenas um outro “eu” mas configura-se ao próprio Jesus Cristo. As palavras de Jesus não deixam margem para dúvida: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes (Mt 25,40)”[1].

Sei que Zygmunt Bauman disse coisas interpelantes sobre a nossa sociedade “líquida”. Sei sobre a (im)possibilidade trágica de uma verdade “líquida” deformadora de valores e do carácter. Sei que se for feita da seiva do evangelho e, concretamente, com a água do “Lava Pés”, nada há que temer da Verdade do nosso tempo presente. Sei que os milagres existem onde os vemos. Sei que os milagres existem onde não os vemos. Sei que os milagres possíveis e os impossíveis acontecem dentro da Verdade Pascal (em qualquer estado da matéria humana…), enquanto houver a ousadia do nosso testemunho, como cristãos. Aliando todos as vontades crentes e descrentes. E sei, também, pelo testemunho da Diana e da Sofia, que os “milagres-da-partida” são raros, baratos no dinheiro poupado, mas caros na Graça a partilhar. Agradeço a sua partilha como modo de estar e ser para os outros. Aconteceu-me já Páscoa antecipada, no dia das mentiras dos nossos pecados, pela virtude do seu testemunho!