quinta-feira, 30 de outubro de 2014

VIDA DOS FIÉIS DEFUNTOS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

A fronteira da morte sempre me impressionou de forma interpelante, apesar de acreditar firmemente no convite e na promessa de Jesus: “Vinde a Mim… e encontrareis descanso para as vossas almas”. (Mt 11, 25-30); apesar de me rever na bela imagem da ovelhinha que Ele encontra nos silvados, resgata com dedicação e, cheio de alegria, conduz aos ombros para junto das outras.

E agora? pensava... Sinto-me só face aos desafios da vida. Tenho de resolver problemas que não esperava, nem dependiam de mim. Recorro à memória e configuro o rosto dos meus familiares. Peço-lhes que me digam algo, me dêem um sorriso, me inspirem uma solução. E o que recebo é um silêncio profundo, definitivo, que procuro interpretar.

Ressoa, então, o eco das suas vidas, das conversas havidas, das respostas dadas para as situações com que nos deparávamos. E a memória faz-se presença e a saudade gera encontro e comunhão. Nasce o desejo de entrar em contacto com eles, de os abraçar, de conhecer a sua sorte, de experienciar a qualidade da sua vida nova.

Sei que esta aspiração tão natural não pode ser inconsequente, nem ficar defraudada. E vem-me a sábia sentença de Santo Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para Vós e o coração humano andará inquieto, enquanto não repousar em Vós”. E surgem, em catadupa, os ensinamentos de Jesus Cristo, o morto que agora vive para sempre. Acresce o testemunho auspicioso de tantos homens e mulheres, de todas as idades, a abonar a ideia de um final feliz para a aventura humana. “Eu sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim viverá para sempre”. Eu creio, Senhor, mas aumenta a minha fé! E Jesus prossegue: Quem se fizer como eu, assim como eu me fiz humano como ele, tem a mesma vida, vida definitiva, vida eterna. E a melhor maneira, depois do baptismo, de sermos como Jesus, é a eucaristia, celebração sacramental em que Jesus, por meio do pão e do vinho, se faz nosso alimento espiritual. Ele humaniza-se e nós divinizamo-nos.

Já, agora. De forma germinal, sacramental. Mas real. É esta a vida eterna: iniciada no tempo, atinge a plenitude na eternidade. É esta a vida que já saboreamos e que, de forma qualitativamente diferente, enche de alegria e satisfação os nossos queridos defuntos.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sobre o olhar paciente do utente

 

Pedro José  |  Justiça e Paz – Aveiro

- impressões e satisfações sobre o SNS: o nosso dinheiro vital  -

      Os tratamentos na Saúde, de que o SNS é o cartão de visita, no que exigem de mais específico, até ao âmbito mais geral: revestem uma importância radical, quase mesmo absoluta.

    Fui merecedor, direta e mais indiretamente, da parte SNS, desde há quatro anos a esta parte, completam-se neste mês de Outubro (esperamos que ares de pré-eleição não sejam manipuladores…), dos serviços de excelência, no domínio público, e no caso, também, da parceria público/privado. Casos de competência da Médica de Família no diagnóstico preventivo de cancro (no espaço de 3/4 messes, noutros casos pode ser tempo excessivo e irreversível… “-Olhe encaminho para Coimbra e não Aveiro, porque estão a demorar muito na resposta”); nos pedidos de examos complementares, com a urgência exigida. Casos de “apenas” (aspas anti demagógicas) 9 messes de espera, para uma cirurgia da catarata. Tratamento excelente a vários níveis, mesmo sem os resultados pós-operatório já confirmados, arrisco afirmar: no questionário de qualidade/satisfação, dos 14 itens perguntados: 10 satisfeito; 2 pouco satisfeito e 2 muito satisfeito. Pouco satisfeito: “O tempo de espera para a hora de intervenção cirúrgica” e “ruído da unidade”; Muito satisfeito: “A forma como foi recebido e acompanhado pela equipa de saúde” e “higiene e conforto na unidade”. Escrevo a partir do Hospital de Águeda.

   Foi pedida também na resposta a esse questionário de atendimento e serviços, um comentário/sugestão, e por via indireta, outra vez, comentava com a pessoa em causa, mais ou menos, esta ideia simples, mas não irreal: “o princípio da descentralização deste serviço de oftalmologista consulta e/ou cirurgias (e noutras valências) deve manter-se. Porque sabemos que a gestão de recursos e o atendimento de proximidade às pessoas não são antagónicos, mas objetivos/metas complementares”.

Quando pela gravidade do tratamento, na exigência de recursos e meios, quem nos poderá “salvar” (salvação e saúde andam juntas sempre…) é/será sempre a qualidade humana e técnica prestada pelo SNS. Disso não tenho nenhuma dúvida de Fé e História (Pessoal e Coletiva)! E quem disser comprovadamente o contrário é porque tem razão também!? Para o caso confesso que poupo todos os messes e pago também um seguro particular de saúde – passa a publicidade, como diz o povo não vá o diabo aprontar… - um seguro mínimo de serviços na Multicare.

     Desejava escrever, «aqui e agora», que me saiu o Euromilhões, pois joguei  - aposta mínima de 2 euros claro está!- por querer pagar as minhas dívidas pessoais e coletivas, mas ao ver a notícia na TV, sobre o totalista, único ou não, residente em Castelo Branco, os 190 milhões voaram (ou os excelentes 138 milhões reais!?…) reservo a conferência da esperança mínima para mais tarde. O jornal Público, hoje, diz-me para que “às 2h da madrugada, atrase os relógios para a 1h”. Como estou em permanente “invernação” (horário de inverno) e, também, tenho vários relógios (plural), isto porque adoro atrasar os relógios dos outros, fico mais contente com perspetiva de na madrugada noturna infinita, hoje, poder reler o meu atraso existencial, quanto a pagamento de dívidas.

     Como tenho Saúde (mesmo quando a Vizinha me vem presentear, agora, com um prato de bilharacos de abóbora!) e também tenho/temos o SNS: o Euromilhões é dispensável (voltarei a jogar: eu é que não sou parvo!?): a vida tal como ela É: um milagre absoluto! Quando se nos dá viver para serviço dos Outros!

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ACIMA DE TUDO, O AMOR

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

     A esplanada do Templo é palco de novo episódio. (Mt 22, 34-40). Os responsáveis dos grupos influentes mexem-se com grande persistência e à-vontade. Aproveitam-se de questões progressivamente mais delicadas e comprometedoras. Depois da política, vem a religião. Agora é o sistema e a hierarquia das verdades que se buscam. Assunto sério, se não houvesse uma segunda intenção: a de experimentar Jesus, a de ver como se posiciona face ao complicado conjunto legal - os peritos apontam 613 mandamentos –, a de saber a qual deles dá prioridade, que parecer tem sobre o núcleo central da vida dos judeus fiéis à Lei recebida de Moisés.

     Os novos contendores pertencem aos fariseus, alegres por saberem que os saduceus se tinham remetido ao silêncio, após a disputa sobre a ressurreição. Era a sua vez e querem “marcar pontos” aproveitando-a com mestria porque têm reduzida influência junto do povo – virão a aumentá-la progressivamente e chegam a constituir a classe preponderante, por volta do ano 70 da nossa era, após a destruição do Templo.

     Jesus situa-se ao nível da pergunta provocante. Ao desafio responde com uma oração conhecida da tradição judaica e que devia ser recitada diariamente. Não podia ser mais certeiro. Amar o Senhor com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito. E não fica por aqui. Acrescenta uma outra prescrição que faz parte do património religioso comum: “Ama o teu próximo como a ti mesmo” ( Lv 19, 18), esclarecendo que o segundo mandamento é semelhante ao primeiro. E sereno, aguarda a reacção que não chega.

     É difícil captar o impacto desta resposta nos piedosos fariseus e em todos os que “mergulham” no seu significado profundo. Eles viviam numa sociedade de desiguais, em que a discriminação estava institucionalizada.         Como podiam entrar na lógica de Jesus que unifica no amor todos os mandamentos e preceitos e apresenta uma consequente escala de valores?! Hoje, as “coisas” não diferem muito, mesmo que não conste oficialmente, mas a realidade impõe-se e os factos “falam” por si.

     O centro da vida humana está no amor. Ocupar este centro com outros valores e interesses é usurpação que desumaniza a pessoa e fragmenta a sociedade. Quando tal acontece, pode ser verdadeira idolatria. E não faltam factos e situações a evidenciar que o padrão de vida actual predominante “gira” à volta do individualismo, do hedonismo e de tantos outros pólos de atracção mobilizadora e exploradora do melhor que há em cada um de nós. O próprio amor vê-se reduzido, com frequência, à sua dimensão egoísta, interesseira, erótica e sensual.

     A resposta de Jesus é clara e envolve no amor toda a pessoa na sua tríplice dimensão: para com Deus, para com os outros, para consigo mesmo. Só na relação de amor cada pessoa encontra o sentido autêntico da vida. É um amor integral e universal, inclusivo e assertivo, capaz de assumir as limitações e sofrimentos, dando-lhes um valor sublime. É um amor inquieto pelo bem do outro, designadamente familiar, vizinho, distante geograficamente e próximo afectivamente. É um amor fiel à semelhança de Deus, que tendo optado por nós, não deixa de levar por diante, com solicitude, a escolha feita, surja o que surgir. É um amor de doação que faz de cada gesto um reforço ao crescimento pessoal e uma expressão de solidariedade fraterna. Os pais, quando o sabem ser, o bombeiro que faz seu o lema “vida pela vida”, os voluntários de todas as causas nobres, os gestores do bem comum com espírito de serviço, os missionários que arriscam tudo pelo povo a que são enviados.

     Não se pode amar e ficar indiferente face a tantas situações de desamor e de desumanidade; a tantos rostos de miséria extrema vítimas de exclusão ostensiva; a tantos famintos de dignidade que lhes pertence por natureza – somos semelhança de Deus pela criação e por outras benfeitorias; a tantos esquecidos da história, sobretudo os que doaram a sua vida até ao martírio por uma causa nobre e justa.

     Não se conhece a reacção dos fariseus. Mas Jesus é taxativo, como se vê noutros episódios da sua vida: Vai e faz o mesmo; ide por todo o mundo anunciar a boa nova. O amor é a força da missão, que, neste domingo, se celebra com especial atenção e solicitude.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

MAIS QUE UMA QUESTÃO DE IMPOSTOS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

     A armadilha não pode falhar. Há que pôr cobro ao agitador Nazareno que se movimenta tão livremente na esplanada do Templo e desafia o mais sagrado das práticas judaicas. O conflito crescia em intensidade e ostentação. A situação tornara-se intolerável. Por isso os chefes religiosos urdem a trama e aliam-se aos líderes políticos, partidários de Herodes. O “caldo” era excelente. (Mt 22, 15-21)

     A delegação parte com uma missiva muito clara: surpreender Jesus em algo ilícito para ser acusado e condenado. Leva consigo uma estratégia aliciante: tecer elogios que, se não fossem hipócritas, eram verdadeiros e reconheciam o agir correcto do Mestre. Pagar ou não o tributo, eis a questão crucial. Se dizia sim, era colaboracionista com o ocupante romano e, por isso, insolidário com o povo oprimido. Se respondesse não, caía sob a alçada da lei e podia ser acusado de subversivo e revolucionário. E o exército imperial não tardaria a fazer-lhe o que havia feito a Judas, o Galileu, aquando da sublevação por ocasião do censo destinado a conhecer a população e a introduzir nova carga de impostos, cerca de seis anos antes de Cristo.

     A trama deixa perceber a ânsia e o cuidado, a lucidez e a alegria dos responsáveis, bem como a vontade de o surpreender e eliminar. A lei judaica não o permitia. O direito romano exigia uma causa justa. Daí, o conluio feito, ainda que juntando adversários “figadais”.

Jesus acolhe a delegação e aceita a questão. Como é seu hábito, não fala de generalidades nem tece considerações abstractas. Desce ao concreto. Aqui, se faz a prova da verdade e autenticidade. Pede que mostrem a moeda do tributo. E eles, ingenuamente, exibem-na, sinal de que a traziam consigo e pagavam o imposto. E prossegue: de quem é esta imagem? E eles respondem sem hesitar: de César. E continua, então pagai-lhe o tributo. Mas a surpresa estava reservada e seria apresentada com a maior clareza e simplicidade: dai a Deus o que é de Deus, pois a sua imagem clama por reconhecimento em cada ser humano. E a delegação passa da vontade de surpreender ao incómodo de ser surpreendida!

     Pagar o imposto – questão tão actual – é dever de todo o cidadão, não um dever cego, mas ilustrado por uma consciência informada e desejosa de cooperar para o bem comum da sociedade. Pagar imposto, não é imposição de escravos, mas direito de pessoas livres que aceitam repartir os bens como forma de solidariedade responsável. Pagar imposto garante a legítima riqueza de quem tem de gerir o bem da colectividade e o faz com acerto. Por isso, engrandece quem o faz. Pelo contrário, fugir ao fisco é sempre questionável e, frequentemente, imoral. Os contribuintes e os agentes fiscais estão ao serviço da mesma causa: a prática da justiça social, o bem-estar dos cidadãos, a redistribuição da riqueza para que todos possam ter uma vida digna. A grandeza do homem livre manifesta-se também nesta capacidade de ver, à luz de Deus, a justiça fiscal e de reconhecer que a comunidade tem o direito de lhe fazer esta exigência: imposto necessário, proporcionado, oportuno, solidário, justo.

A surpresa que Jesus reserva à delegação enviada e, por ela, a todos nós, passa por aceitar que Deus não se confunde com as práticas do templo, embora possa, por elas, ser louvado; nem pelas normas da instituição religiosa, ainda que estas possam reforçar pedagogicamente a nossa relação com Ele; nem pela acção política ou económica dos mercados desregulados e sem ética, mesmo que esta acção produza bens apreciáveis; nem pelas concordatas “Igreja e Estado”, ficando a Igreja com o sagrado e religioso e o Estado com o civil e secular, embora estes acordos regulem o respeito mútuo e a recíproca colaboração no que diz respeito ao bem comum.

     A novidade surpreendente de Jesus passa por esta aceitação incondicional e consequente. A imagem de Deus e sua semelhança é o ser humano em pessoa, unido em família e em associações que dão suporte e vitalidade à sociedade, integrado em comunidades cristãs que realizam localmente a missão da Igreja. A Deus, que tem as suas mediações históricas e devem ser respeitadas, pertence tudo e todos!

Sobre o ardor do viver: Ébola sem nós?!

 

Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

- (im)precisões de ensaio a-histórico -

«Amenidade: «Somos sedentos de «amenidade». (Cfr. Santo Agostinho, Confissões, Livro IX, nº3, p.250 e Livro X, nº34, p.334).

«O surto que vivemos atualmente - e que, com o caso de contágio em Madrid, já escapou ao controlo do continente africano - é mais do que uma simples epidemia, assegura Piot. "Isto deve ficar claro para todos: isto não é apenas uma epidemia. É uma catástrofe humanitária. Não necessitamos apenas de cuidados de saúde, mas também especialistas em logística, camiões, jeeps e produtos alimentares. Uma epidemia como esta pode desestabilizar regiões inteiras. Tenho esperança que consigamos controlá-la. Nunca pensei que pudesse chegar a este ponto." Peter Piot, investigador belga, que fez parte da equipa de investigação que descobriu o ébola, in http://expresso.sapo.pt/a-incrivel-historia-da-descoberta-do-ebola=f892965, acesso 15-10-2014.

      (Re)Inventar o quotidiano absurdo retendo o Sofrimento, a Dor, e a Morte do «Outro», em África, ou em Madrid, «às nossas portas», pois dizem-nos a «situação está descontrolada». Se ninguém duvida da Realidade do perigo mortal que nos ameaça a todos (“lá” e “cá”; mais “lá” do que “cá”; e posteriormente, nem haverá “cá” ou “lá”…). Alguém nos situa diante da Indiferença ao Ébola? Eis a «chave apocalíptica». Apenas ignorância de relaxamento. Só agora acordamos (mais uma vez) para o pesadelo humanitário?!

      Não podemos ignorar as contradições e vicissitudes da História, a mobilidade em crise, a multiplicidade dos espaços em curtos períodos de tempo (“21” dias e a morte poderá chegar com hora marcada…), as fronteiras flutuam sem vedações. Geografias do Medo irracional. Estamos diante da tentação da ignorância, da tentação da indiferença, numa palavra, em situação humilhante: da tentação da totalidade do abandono. Descaso sem Dignidade: que vem de “trás” e chega “agora”; cada vez mais acelerando a História, com violência mortal.

       Questão da singularidade da Morte nos objetos; da singularidade dos grupos ou das pertenças, da recomposição de lugares e tempos; da singularidade de todos os relacionamentos e histórias pessoais. “Nós” (protegidos a qualquer custo…) não podemos correr o risco de morrer; “aqueles”, “eles” e “esses” (desprotegidos sem qualquer custo…) podem vir a morrer. Supõe, propõe e impõe-se o Futuro do Próximo diante de Mim Mesmo salvo do Egoísmo.

      Considerando apenas algumas sínteses (im)possíveis:

      a) «Todos se conjugam e tudo se conjuga». Não podemos (des)multiplicar desculpas e adiamentos. «Paz e Justiça» sejam sustento e remédio para a nossa Vida em Comum. Temos de deixar de conjugar a não-inscrição de África no Tempo. Espectadores de si próprios ou protagonistas da conversão? Turistas da perversão ou críticos da mentira abjecta? O responder mudo.

      b) «Cada corpo ocupa o seu lugar». Mas esta ocupação singular e exclusiva – pelo perigo eminente do contágio mortal e respetiva fuga diante do tratamento – é mais a do cadáver na sua sepultura do que a do corpo nascente ou vivo. Na ordem do nascimento e da vida, o lugar próprio, como a individualidade absoluta, são mais difíceis de definir e de pensar (cfr. AUGÉ, Marc, Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, Livraria Letra Viva, Lisboa, 2012, p.50). Onde está o nosso compromisso vital com um espaço digno para vivermos todos? O perguntar surdo.

      c) «Pelo ardor do viver não se pode ignorar (mais) África». «Nós» (real e não virtual) humanidade inteira nascemos “lá” e de “lá” não podemos morrer mas reviver. Cada desgraça televisa apaga a memória da desgraça anterior!? Porque temos um Mundo fechado e autossuficiente, uma Globalização insolidária, é assim que todos continuaremos a pagar – uns (quase sempre) mais que outros – com o preço da «própria» Vida: a do Outro Algures!? Diálogo com obras: não dizer mas fazer!

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

CONVIDADOS PARA A FESTA NUPCIAL

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

A sala enche-se de convidados para a festa nupcial. (Mt 22, 1-14). Esteve em risco de ficar vazia, contrariando todas as expectativas. Salva a situação, a insistência paciente do pai do noivo que resulta em pleno. O amor desdobra-se em convites, face às recusas recebidas. A lista convencional tem de ser profundamente alterada. Quem, segundo a praxe, estava em primeiro lugar, dá preferência a outros interesses e não quer participar, sobrepõe as preocupações reais ou fingidas, liberta-se de incómodos, dá largas a velhos ressentimentos, exercendo violência e eliminando os portadores do convite. 

A praxe é rigorosa. Antes de aceitar, o convidado procura informar-se, cuidadosamente, sobre os possíveis participantes. A escala social é padrão de referência e introduz níveis de oscilação no apreço e na consideração de cada um. Entre os comensais e entre estes e quem organiza a festa.

“Ide às encruzilhadas dos caminhos e convidai todos os que encontrardes”. O amor do pai corre imensos riscos, mas realiza a festa do filho. Assume a condição de quem anda nos caminhos cruzados da vida, espera nas esquinas das ruas, consome o tempo em bagatelas de lazer e entretenimento, alimenta conversas de lamento e resignação. É a condição de gente sem trabalho, de pessoas marginalizadas, de mulheres prostituídas, de ricos arruinados, de estrangeiros refugiados e sem meios para chegarem à sua terra, de todos os que têm o ferrete da exclusão social e religiosa, dos sem-abrigo.

Que impacto haverá provocado esta decisão nos ouvintes de Jesus, sobretudo nos zelosos guardiães do templo e nos sábios mestres da Escritura! A parábola é a última de três que a comunidade de Mateus nos transmite: os convidados para festa nupcial, os arrendatários da vinha, os filhos inconsequentes. Qual delas a mais interpelante e ousada! A tensão é visível e os “campos” vão-se extremando. As preferências do Pai/Deus tornam-se claras, segundo as narrativas de Jesus. O banquete do Rei vai ser saboreado por “gentalha” que não consta das listas oficiais. 

A festa começa com a reunião à volta da mesa comum. Todos a saciarem a fome de alimento, mas sobretudo a dignidade de serem pessoas; todos em comunhão de sentimentos, mas sobretudo de estarem em sintonia com o Pai, deliciado com os convivas de seu filho; todos em harmonia respeitadora de diferenças, mas sobretudo de viverem em fraternidade que humaniza e liberta. 

A festa, agora celebrada, vem de longe e antecipa o futuro definitivo: o banquete que está preparado para a família de Deus quando toda a humanidade chegar à sua plenitude. Os profetas, especialmente Isaías, ajudam-nos a intuir e a fantasiar o que será, descrevendo com requinte alguns ingredientes da ementa. Jesus toma parte em refeições diversas e, no decorrer de uma – a ceia pascal – institui a eucaristia como banquete sacramental e penhor da “futura glória”. 

A eucaristia constitui memorial perene deste amor com que Deus nos ama e nos vai “tocando” de tantos modos, sobretudo quando à mesa nos reunimos em família, quando fazemos festa em vizinhança e comunidade, quando apreciamos a dignidade comum que irmana toda a humanidade, quando respeitamos em liberdade a decisão responsável dos outros, quando prosseguimos, incansavelmente, o bem de todos, a começar pela satisfação das suas necessidades básicas, quando acolhemos o amor de Deus por nós e aceitamos fazer-nos doação de entrega generosa para os outros.

Por isso, sem eucaristia vai definhando o vigor da fé, esmorecendo a chama da esperança, agonizando o dinamismo da caridade que se faz serviço incondicional. Coerentemente, o cristão autêntico não pode passar sem eucaristia, coração de todas as celebrações dominicais.

(Em “Crescer na fé: voando sobre as asas da aurora”, ed. Principia, a sair em Dezembro pf.)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

a vinha da nossa generosidade

 

Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

“A esterilidade é um vírus que está em nós.

A tentação da destruição é outro”.

José Augusto Mourão, (2011), p.130.

1. A Igreja é um corpo a caminho, uma construção. Hoje a escritura fala da «Vinha», como símbolo dessa realidade. Deus quer uma vinha fértil no seu Povo, e em cada um de nós seus membros. O sentido da pertença e da participação. Como nos entendemos enquanto Vinha que é “organismo vivo”? Vida deve gerar vida. A vida comporta o desejo de dar frutos. O tornar-se fecundo(a). O tempo passa e com ele o desejo de possuir. Quando chegar o tempo da colheita, entramos na «eternidade» - (cada vez que somos fecundos saboreamos a eternidade!) -, o lugar de trabalho para todos, os frutos bons e menos bons (frutos apenas generosos!), fecundados pela sabedoria/consciência que nos livra da pretensão de ser dono, sendo só servidor.

2. A Vinha é uma planta muito instável. O seu fruto – enquanto resultado global - é instável até ao tempo da vindima (há muitas colheitas). Basta uma “chuva a mais ou a menos”, e uma colheita inteira pode estar totalmente perdida. A instabilidade é causada pelo interior da planta ou pela agressividade exterior do ambiente - Jesus fala mesmo de violência homicida premeditada! E assim também somos nós. O melhor vinho doce ou o vinagre mais intragável! De tudo somos/seremos capazes!? “Quando vier o dono da vinha que fará àqueles vinhateiros?” Ou que fizemos nós do «Voto de Confiança» depositado por Deus em cada um de nós?

3. Surpresa das surpresas. A conclusão de Deus é pela positiva. Da morte do Filho surgiram «novos-trabalhadores-para-a-vinha-de-sempre». Novos frutos de hoje em diante. “A esterilidade é um vírus que está em nós. A tentação da destruição é outro”. Nem esterilidade, nem destruição. Por isso, seremos sempre fecundos em Deus, para além da nossa maior ou menor produtividade; e sempre seremos construtivos em Deus, quando nos sabemos generosos nos imensos Dons, por nós administrados. Servidores e não donos. A lei da fecundidade: «A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular». A fecundidade que nasce da rejeição. A rejeição tornou-se bênção. Do fracasso extraíram-se novos frutos. As contas incontáveis de Deus através dos nossos desvios!

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

CUIDAR DA VINHA. É A NOSSA VEZ!

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Finalmente, nossa! – declaram, alegres e triunfantes, os vinhateiros. A herança, que tanto ansiámos e tanto trabalho nos deu, é nossa. Valeu a pena. Tudo ultrapassámos. Estão neutralizados ou liquidados os enviados do dono para receberem a colheita. Acabámos de dar a morte ao próprio filho. Conseguimos a vinha, apesar de ficarmos com as mãos cheias de sangue. Afirmámos a nossa determinação e rasgámos o contrato. Ouvimos palavras duras, mas escutámos a razão emotiva que clamava pela posse da terra e dos seus produtos. Finalmente livres de quem se aproveita do nosso trabalho! (Mt 21, 33-43)

O dono da vinha dá-lhes tempo para serem razoáveis. Aumenta, não apenas o número de enviados, mas a sua representatividade. O filho, herdeiro por natureza e por lei, entra em acção. Tudo em vão. Resolve, então, enfrentar os arrendatários usurpadores. E aplica -lhes uma sentença “sem piedade”, cruel.

O narrador da parábola é Jesus que vê crescer a hostilidade dos responsáveis do Templo de Jerusalém. Os interlocutores são os sumo-sacerdotes e os chefes do povo. O recurso usado, a vinha e os seus cachos de uvas, é meio adequado por ser muito conhecido e pedagógico. O relato da acção envolve os ouvintes e faz prever um desfecho desastroso. O envolvimento progressivo torna-se claro na resposta que dão à pergunta interpelante de Jesus. Quando regressar o dono da vinha, que fará àqueles trabalhadores? Respondem sem hesitação: confiará a vinha a quem a trate bem e entregue a tempo a colheita, e eliminará sem piedade os usurpadores malvados e assassinos. Resposta justa, segundo as leis da época. Resposta que oferece o “trampolim” para a aplicação directa da mensagem contida na parábola alegórica.

Jesus de Nazaré sabe que “o cerco” se aperta. Os dias finais aproximam-se. O embate definitivo está em marcha. A linguagem torna-se mais assertiva e interpelante. Os interlocutores dão-se conta, mas reagem negativamente. Mesmo com a evocação de citações bíblicas por eles conhecidas. “Nunca lestes na Escritura…?” E apresenta dois contrastes “a quente”. A pedra de construção rejeitada pelos construtores torna-se pedra angular. De forma velada referia-se a ele, a pedra, e a eles, os construtores/guias do edifício/templo onde se reúne o povo/vinha de Deus.

O segundo contraste é ainda mais provocante: “Ser-vos-á arrancado o reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos.” A sentença está lavrada, segundo a versão de Mateus. A vinha do Senhor continua a ser carinhosamente tratada pelo seu dono, mas o encargo de velar por ela muda “de mãos”. Alegre notícia que implica uma tremenda responsabilidade. Outrora e agora. E os frutos estão exemplarmente apresentados na carta aos cristãos de Filipos que se proclama nas celebrações de hoje.

A vinha tem um sentido peculiar e uma singular riqueza: a intimidade da consciência, a família e outras formas humanas associativas, as comunidades cristãs, a sociedade civil, a Igreja, o mundo. Por todas, vela o Deus da vida, por meio dos seus encarregados: a pessoa, os pais, os responsáveis, os líderes, os pastores, os chefes das nações e dos povos. Cada um, a seu nível; mas todos agentes destacados em missão de cuidar da vinha do Senhor; todos encarregados de transmitir fielmente o legado recebido e solicitamente cuidado.