segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

DIA MUNDIAL DA PAZ 1º DE JANEIRO DE 2013 | MENSAGEM do Papa Bento XVI

 
BEM-AVENTURADOS OS OBREIROS DA PAZ
 
Bento XVI1. Cada ano novo traz consigo a expectativa de um mundo melhor. Nesta perspetiva, peço a Deus, Pai da humanidade, que nos conceda a concórdia e a paz a fim de que possam tornar-se realidade, para todos, as aspirações duma vida feliz e próspera.
À distância de 50 anos do início do Concílio Vaticano II, que permitiu dar mais força à missão da Igreja no mundo, anima constatar como os cristãos, Povo de Deus em comunhão com Ele e caminhando entre os homens, se comprometem na história compartilhando alegrias e esperanças, tristezas e angústias, anunciando a salvação de Cristo e promovendo a paz para todos.
Na realidade o nosso tempo, caracterizado pela globalização, com seus aspetos positivos e negativos, e também por sangrentos conflitos ainda em curso e por ameaças de guerra, requer um renovado e concorde empenho na busca do bem comum, do desenvolvimento de todo o homem e do homem todo.
Causam apreensão os focos de tensão e conflito causados por crescentes desigualdades entre ricos e pobres, pelo predomínio duma mentalidade egoísta e individualista que se exprime inclusivamente por um capitalismo financeiro desregrado. Além de variadas formas de terrorismo e criminalidade internacional, põem em perigo a paz aqueles fundamentalismos e fanatismos que distorcem a verdadeira natureza da religião, chamada a favorecer a comunhão e a reconciliação entre os homens.
E no entanto as inúmeras obras de paz, de que é rico o mundo, testemunham a vocação natural da humanidade à paz. Em cada pessoa, o desejo de paz é uma aspiração essencial e coincide, de certo modo, com o anelo por uma vida humana plena, feliz e bem sucedida. Por outras palavras, o desejo de paz corresponde a um princípio moral fundamental, ou seja, ao dever-direito de um desenvolvimento integral, social, comunitário, e isto faz parte dos desígnios que Deus tem para o homem. Na verdade, o homem é feito para a paz, que é dom de Deus.
Tudo isso me sugeriu buscar inspiração, para esta Mensagem, às palavras de Jesus Cristo: «Bem–aventurados os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9).
A bem-aventurança evangélica
2. As bem-aventuranças proclamadas por Jesus (cf. Mt 5, 3-12; Lc 6, 20-23) são promessas. Com efeito, na tradição bíblica, a bem-aventurança é um género literário que traz sempre consigo uma boa nova, ou seja um evangelho, que culmina numa promessa. Assim, as bem-aventuranças não são meras recomendações morais, cuja observância prevê no tempo devido – um tempo localizado geralmente na outra vida – uma recompensa, ou seja, uma situação de felicidade futura; mas consistem sobretudo no cumprimento duma promessa feita a quantos se deixam guiar pelas exigências da verdade, da justiça e do amor. Frequentemente, aos olhos do mundo, aqueles que confiam em Deus e nas suas promessas aparecem como ingénuos ou fora da realidade; ao passo que Jesus lhes declara que já nesta vida – e não só na outra – se darão conta de serem filhos de Deus e que, desde o início e para sempre, Deus está totalmente solidário com eles. Compreenderão que não se encontram sozinhos, porque Deus está do lado daqueles que se comprometem com a verdade, a justiça e o amor. Jesus, revelação do amor do Pai, não hesita em oferecer-Se a Si mesmo em sacrifício. Quando se acolhe Jesus Cristo, Homem-Deus, vive-se a jubilosa experiência de um dom imenso: a participação na própria vida de Deus, isto é, a vida da graça, penhor duma vida plenamente feliz. De modo particular, Jesus Cristo dá-nos a paz verdadeira, que nasce do encontro confiante do homem com Deus.
A bem-aventurança de Jesus diz que a paz é, simultaneamente, dom messiânico e obra humana. Na verdade, a paz pressupõe um humanismo aberto à transcendência; é fruto do dom recíproco, de um mútuo enriquecimento, graças ao dom que provém de Deus e nos permite viver com os outros e para os outros. A ética da paz é uma ética de comunhão e partilha. Por isso, é indispensável que as várias culturas de hoje superem antropologias e éticas fundadas sobre motivos teorico-práticos meramente subjetivistas e pragmáticos, em virtude dos quais as relações da convivência se inspiram em critérios de poder ou de lucro, os meios tornam-se fins, e vice-versa, a cultura e a educação concentram-se apenas nos instrumentos, na técnica e na eficiência. Condição preliminar para a paz é o desmantelamento da ditadura do relativismo e da apologia duma moral totalmente autónoma, que impede o reconhecimento de quão imprescindível seja a lei moral natural inscrita por Deus na consciência de cada homem. A paz é construção em termos racionais e morais da convivência, fundando-a sobre um alicerce cuja medida não é criada pelo homem, mas por Deus. Como lembra o Salmo 29, « o Senhor dá força ao seu povo; o Senhor abençoará o seu povo com a paz » (v. 11).
A paz: dom de Deus e obra do homem
3. A paz envolve o ser humano na sua integridade e supõe o empenhamento da pessoa inteira: é paz com Deus, vivendo conforme à sua vontade; é paz interior consigo mesmo, e paz exterior com o próximo e com toda a criação. Como escreveu o Beato João XXIII na Encíclica Pacem in terris – cujo cinquentenário terá lugar dentro de poucos meses –, a paz implica principalmente a construção duma convivência humana baseada na verdade, na liberdade, no amor e na justiça.A negação daquilo que constitui a verdadeira natureza do ser humano, nas suas dimensões essenciais, na sua capacidade intrínseca de conhecer a verdade e o bem e, em última análise, o próprio Deus, põe em perigo a construção da paz. Sem a verdade sobre o homem, inscrita pelo Criador no seu coração, a liberdade e o amor depreciam-se, a justiça perde a base para o seu exercício.
Para nos tornarmos autênticos obreiros da paz, são fundamentais a atenção à dimensão transcendente e o diálogo constante com Deus, Pai misericordioso, pelo qual se implora a redenção que nos foi conquistada pelo seu Filho Unigénito. Assim o homem pode vencer aquele germe de obscurecimento e negação da paz que é o pecado em todas as suas formas: egoísmo e violência, avidez e desejo de poder e domínio, intolerância, ódio e estruturas injustas.
A realização da paz depende sobretudo do reconhecimento de que somos, em Deus, uma única família humana. Esta, como ensina a Encíclica Pacem in terris, está estruturada mediante relações interpessoais e instituições sustentadas e animadas por um «nós» comunitário, que implica uma ordem moral, interna e externa, na qual se reconheçam sinceramente, com verdade e justiça, os próprios direitos e os próprios deveres para com os demais. A paz é uma ordem de tal modo vivificada e integrada pelo amor, que se sentem como próprias as necessidades e exigências alheias, que se fazem os outros comparticipantes dos próprios bens e que se estende sempre mais no mundo a comunhão dos valores espirituais. É uma ordem realizada na liberdade, isto é, segundo o modo que corresponde à dignidade de pessoas que, por sua própria natureza racional, assumem a responsabilidade do próprio agir.
A paz não é um sonho, nem uma utopia; a paz é possível. Os nossos olhos devem ver em profundidade, sob a superfície das aparências e dos fenómenos, para vislumbrar uma realidade positiva que existe nos corações, pois cada homem é criado à imagem de Deus e chamado a crescer contribuindo para a edificação dum mundo novo. Na realidade, através da encarnação do Filho e da redenção por Ele operada, o próprio Deus entrou na história e fez surgir uma nova criação e uma nova aliança entre Deus e o homem (cf. Jr 31, 31-34), oferecendo-nos a possibilidade de ter « um coração novo e um espírito novo » (cf. Ez 36, 26).
Por isso mesmo, a Igreja está convencida de que urge um novo anúncio de Jesus Cristo, primeiro e principal fator do desenvolvimento integral dos povos e também da paz. Na realidade, Jesus é a nossa paz, a nossa justiça, a nossa reconciliação (cf. Ef 2, 14; 2 Cor 5, 18). O obreiro da paz, segundo a bem–aventurança de Jesus, é aquele que procura o bem do outro, o bem pleno da alma e do corpo, no tempo presente e na eternidade.
A partir deste ensinamento, pode-se deduzir que cada pessoa e cada comunidade – religiosa, civil, educativa e cultural – é chamada a trabalhar pela paz. Esta consiste, principalmente, na realização do bem comum das várias sociedades, primárias e intermédias, nacionais, internacionais e a mundial. Por isso mesmo, pode-se supor que os caminhos para a implementação do bem comum sejam também os caminhos que temos de seguir para se obter a paz.
Obreiros da paz são aqueles que amam, defendem e promovem a vida na sua integridade
4. Caminho para a consecução do bem comum e da paz é, antes de mais nada, o respeito pela vida humana, considerada na multiplicidade dos seus aspetos, a começar da conceção, passando pelo seu desenvolvimento até ao fim natural. Assim, os verdadeiros obreiros da paz são aqueles que amam, defendem e promovem a vida humana em todas as suas dimensões: pessoal, comunitária e transcendente. A vida em plenitude é o ápice da paz. Quem deseja a paz não pode tolerar atentados e crimes contra a vida.
Aqueles que não apreciam suficientemente o valor da vida humana, chegando a defender, por exemplo, a liberalização do aborto, talvez não se deem conta de que assim estão a propor a prossecução duma paz ilusória. A fuga das responsabilidades, que deprecia a pessoa humana, e mais ainda o assassinato de um ser humano indefeso e inocente nunca poderão gerar felicidade nem a paz. Na verdade, como se pode pensar em realizar a paz, o desenvolvimento integral dos povos ou a própria salvaguarda do ambiente, sem estar tutelado o direito à vida dos mais frágeis, a começar pelos nascituros? Qualquer lesão à vida, de modo especial na sua origem, provoca inevitavelmente danos irreparáveis ao desenvolvimento, à paz, ao ambiente. Tão pouco é justo codificar ardilosamente falsos direitos ou opções que, baseados numa visão redutiva e relativista do ser humano e com o hábil recurso a expressões ambíguas tendentes a favorecer um suposto direito ao aborto e à eutanásia, ameaçam o direito fundamental à vida.
Também a estrutura natural do matrimónio, como união entre um homem e uma mulher, deve ser reconhecida e promovida contra as tentativas de a tornar, juridicamente, equivalente a formas radicalmente diversas de união que, na realidade, a prejudicam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu caráter peculiar e a sua insubstituível função social.
Estes princípios não são verdades de fé, nem uma mera derivação do direito à liberdade religiosa; mas estão inscritos na própria natureza humana – sendo reconhecíveis pela razão – e consequentemente comuns a toda a humanidade. Por conseguinte, a ação da Igreja para os promover não tem caráter confessional, mas dirige-se a todas as pessoas, independentemente da sua filiação religiosa. Tal ação é ainda mais necessária quando estes princípios são negados ou mal entendidos, porque isso constitui uma ofensa contra a verdade da pessoa humana, uma ferida grave infligida à justiça e à paz.
Por isso, uma importante colaboração para a paz é dada também pelos ordenamentos jurídicos e a administração da justiça quando reconhecem o direito ao uso do princípio da objeção de consciência face a leis e medidas governamentais que atentem contra a dignidade humana, como o aborto e a eutanásia.
Entre os direitos humanos basilares mesmo para a vida pacífica dos povos, conta-se o direito dos indivíduos e comunidades à liberdade religiosa. Neste momento histórico, torna-se cada vez mais importante que este direito seja promovido não só negativamente, como liberdade de – por exemplo, de obrigações e coações quanto à liberdade de escolher a própria religião –, mas também positivamente, nas suas várias articulações, como liberdade para: por exemplo, para testemunhar a própria religião, anunciar e comunicar a sua doutrina; para realizar atividades educativas, de beneficência e de assistência que permitem aplicar os preceitos religiosos; para existir e atuar como organismos sociais, estruturados de acordo com os princípios doutrinais e as finalidades institucionais que lhe são próprias. Infelizmente vão-se multiplicando, mesmo em países de antiga tradição cristã, os episódios de intolerância religiosa, especialmente contra o cristianismo e aqueles que se limitam a usar os sinais identificadores da própria religião.
O obreiro da paz deve ter presente também que as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia insinuam, numa percentagem cada vez maior da opinião pública, a convicção de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais. Ora, há que considerar que estes direitos e deveres são fundamentais para a plena realização de outros, a começar pelos direitos civis e políticos.
E, entre os direitos e deveres sociais atualmente mais ameaçados, conta-se o direito ao trabalho. Isto é devido ao facto, que se verifica cada vez mais, de o trabalho e o justo reconhecimento do estatuto jurídico dos trabalhadores não serem adequadamente valorizados, porque o crescimento económico dependeria sobretudo da liberdade total dos mercados. Assim o trabalho é considerado uma variável dependente dos mecanismos económicos e financeiros. A propósito disto, volto a afirmar que não só a dignidade do homem mas também razões económicas, sociais e políticas exigem que se continue « a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção ».4 Para se realizar este ambicioso objetivo, é condição preliminar uma renovada apreciação do trabalho, fundada em princípios éticos e valores espirituais, que revigore a sua conceção como bem fundamental para a pessoa, a família, a sociedade. A um tal bem corresponde um dever e um direito, que exigem novas e ousadas políticas de trabalho para todos.
Construir o bem da paz através de um novo modelo de desenvolvimento e de economia
5. De vários lados se reconhece que, hoje, é necessário um novo modelo de desenvolvimento e também uma nova visão da economia. Quer um desenvolvimento integral, solidário e sustentável, quer o bem comum exigem uma justa escala de bens-valores, que é possível estruturar tendo Deus como referência suprema. Não basta ter à nossa disposição muitos meios e muitas oportunidades de escolha, mesmo apreciáveis; é que tanto os inúmeros bens em função do desenvolvimento como as oportunidades de escolha devem ser empregues de acordo com a perspetiva duma vida boa, duma conduta reta, que reconheça o primado da dimensão espiritual e o apelo à realização do bem comum. Caso contrário, perdem a sua justa valência, acabando por erguer novos ídolos.
Para sair da crise financeira e económica atual, que provoca um aumento das desigualdades, são necessárias pessoas, grupos, instituições que promovam a vida, favorecendo a criatividade humana para fazer da própria crise uma ocasião de discernimento e de um novo modelo económico. O modelo que prevaleceu nas últimas décadas apostava na busca da maximização do lucro e do consumo, numa ótica individualista e egoísta que pretendia avaliar as pessoas apenas pela sua capacidade de dar resposta às exigências da competitividade. Olhando de outra perspetiva, porém, o sucesso verdadeiro e duradouro pode ser obtido com a dádiva de si mesmo, dos seus dotes intelectuais, da própria capacidade de iniciativa, já que o desenvolvimento económico suportável, isto é, autenticamente humano tem necessidade do princípio da gratuidade como expressão de fraternidade e da lógica do dom. Concretamente na atividade económica, o obreiro da paz aparece como aquele que cria relações de lealdade e reciprocidade com os colaboradores e os colegas, com os clientes e os usuários. Ele exerce a atividade económica para o bem comum, vive o seu compromisso como algo que ultrapassa o interesse próprio, beneficiando as gerações presentes e futuras. Deste modo sente-se a trabalhar não só para si mesmo, mas também para dar aos outros um futuro e um trabalho dignos.
No âmbito econômico, são necessárias – especialmente por parte dos Estados – políticas de desenvolvimento industrial e agrícola que tenham a peito o progresso social e a universalização de um Estado de direito e democrático. Fundamental e imprescindível é também a estruturação ética dos mercados monetário, financeiro e comercial; devem ser estabilizados e melhor coordenados e controlados, de modo que não causem dano aos mais pobres. A solicitude dos diversos obreiros da paz deve ainda concentrar-se – com mais determinação do que tem sido feito até agora – na consideração da crise alimentar, muito mais grave do que a financeira. O tema da segurança das provisões alimentares voltou a ser central na agenda política internacional, por causa de crises relacionadas, para além do mais, com as bruscas oscilações do preço das matérias–primas agrícolas, com comportamentos irresponsáveis por parte de certos agentes económicos e com um controle insuficiente por parte dos Governos e da comunidade internacional. Para enfrentar semelhante crise, os obreiros da paz são chamados a trabalhar juntos em espírito de solidariedade, desde o nível local até ao internacional, com o objetivo de colocar os agricultores, especialmente nas pequenas realidades rurais, em condições de poderem realizar a sua atividade de modo digno e sustentável dos pontos de vista social, ambiental e económico.
Educação para uma cultura da paz: o papel da família e das instituições
6. Desejo veementemente reafirmar que os diversos obreiros da paz são chamados a cultivar a paixão pelo bem comum da família e pela justiça social, bem como o empenho por uma válida educação social.
Ninguém pode ignorar ou subestimar o papel decisivo da família, célula básica da sociedade, dos pontos de vista demográfico, ético, pedagógico, económico e político. Ela possui uma vocação natural para promover a vida: acompanha as pessoas no seu crescimento e estimula-as a enriquecerem-se entre si através do cuidado recíproco. De modo especial, a família cristã guarda em si o primordial projeto da educação das pessoas segundo a medida do amor divino. A família é um dos sujeitos sociais indispensáveis para a realização duma cultura da paz. É preciso tutelar o direito dos pais e o seu papel primário na educação dos filhos, nomeadamente nos âmbitos moral e religioso. Na família, nascem e crescem os obreiros da paz, os futuros promotores duma cultura da vida e do amor.
Nesta tarefa imensa de educar para a paz, estão envolvidas de modo particular as comunidades dos crentes. A Igreja toma parte nesta grande responsabilidade através da nova evangelização, que tem como pontos de apoio a conversão à verdade e ao amor de Cristo e, consequentemente, o renascimento espiritual e moral das pessoas e das sociedades. O encontro com Jesus Cristo plasma os obreiros da paz, comprometendo-os na comunhão e na superação da injustiça.
Uma missão especial em prol da paz é desempenhada pelas instituições culturais, escolásticas e universitárias. Delas se requer uma notável contribuição não só para a formação de novas gerações de líderes, mas também para a renovação das instituições públicas, nacionais e internacionais. Podem também contribuir para uma reflexão científica que radique as atividades económicas e financeiras numa sólida base antropológica e ética. O mundo atual, particularmente o mundo da política, necessita do apoio dum novo pensamento, duma nova síntese cultural, para superar tecnicismos e harmonizar as várias tendências políticas em ordem ao bem comum. Este, visto como conjunto de relações interpessoais e instituições positivas ao serviço do crescimento integral dos indivíduos e dos grupos, está na base de toda a verdadeira educação para a paz.
Uma pedagogia do obreiro da paz
7. Concluindo, há necessidade de propor e promover uma pedagogia da paz. Esta requer uma vida interior rica, referências morais claras e válidas, atitudes e estilos de vida adequados. Com efeito, as obras de paz concorrem para realizar o bem comum e criam o interesse pela paz, educando para ela. Pensamentos, palavras e gestos de paz criam uma mentalidade e uma cultura da paz, uma atmosfera de respeito, honestidade e cordialidade. Por isso, é necessário ensinar os homens a amarem-se e educarem-se para a paz, a viverem mais de benevolência que de mera tolerância. Incentivo fundamental será « dizer não à vingança, reconhecer os próprios erros, aceitar as desculpas sem as buscar e, finalmente, perdoar »,7 de modo que os erros e as ofensas possam ser verdadeiramente reconhecidos a fim de caminhar juntos para a reconciliação. Isto requer a difusão duma pedagogia do perdão. Na realidade, o mal vence-se com o bem, e a justiça deve ser procurada imitando a Deus Pai que ama todos os seus filhos (cf. Mt 5, 21-48). É um trabalho lento, porque supõe uma evolução espiritual, uma educação para os valores mais altos, uma visão nova da história humana. É preciso renunciar à paz falsa, que prometem os ídolos deste mundo, e aos perigos que a acompanham; refiro-me à paz que torna as consciências cada vez mais insensíveis, que leva a fechar-se em si mesmo, a uma existência atrofiada vivida na indiferença. Ao contrário, a pedagogia da paz implica serviço, compaixão, solidariedade, coragem e perseverança.
Jesus encarna o conjunto destas atitudes na sua vida até ao dom total de Si mesmo, até «perder a vida» (cf. Mt 10, 39; Lc 17, 33; Jo 12, 25). E promete aos seus discípulos que chegarão, mais cedo ou mais tarde, a fazer a descoberta extraordinária de que falamos no início: no mundo, está presente Deus, o Deus de Jesus Cristo, plenamente solidário com os homens. Neste contexto, apraz-me lembrar a oração com que se pede a Deus para fazer de nós instrumentos da sua paz, a fim de levar o seu amor onde há ódio, o seu perdão onde há ofensa, a verdadeira fé onde há dúvida. Por nossa vez pedimos a Deus, juntamente com o Beato João XXIII, que ilumine os responsáveis dos povos para que, junto com a solicitude pelo justo bem-estar dos próprios concidadãos, garantam e defendam o dom precioso da paz; inflame a vontade de todos para superarem as barreiras que dividem, reforçarem os vínculos da caridade mútua, compreenderem os outros e perdoarem aos que lhes tiverem feito injúrias, de tal modo que, em virtude da sua ação, todos os povos da terra se tornem irmãos e floresça neles e reine para sempre a tão suspirada paz.
Com esta invocação, faço votos de que todos possam ser autênticos obreiros e construtores da paz, para que a cidade do homem cresça em concórdia fraterna, na prosperidade e na paz.
Vaticano, 8 de dezembro de 2012.
Por Rádio Vaticano


































domingo, 30 de dezembro de 2012

“Voltaram à sua procura” (*)(Lc 2,45)

 
Pe Pedro José L. Correia | CDJP.Aveiro
Reflexões: Ano C – Sagrada Família, Lc 2, 41-52
         Disposição 1. – A dinâmica da procura define os rumos da vida. A vida de cada um depende daquilo que se procura. As diferentes direções tomadas na vida dependem daquilo que se procura. O que se procura define e determina o que é a vida de cada pessoa. É importante ter claro o que se procura.
          Disposição 1.1. – Pode-se procurar pela força do amor. Quem procura por amor encontra os frutos do próprio amor. Procura-se também por outras tantas razões. É preciso procurar sempre. Importa, pois, procurar o que dá garantias de fecundidade para a vida. Toda procura inclui, então, a purificação de motivações para permitir, como resultado da procura, o encontro de tudo o que garante e promove a vida plena (…que se vai plenificando). Amadurecemos na procura.
       Disposição 2. – José e Maria procuraram Jesus. Pensavam que estivesse na caravana, no retorno de Jerusalém, aonde tinham ido para a festa da Páscoa, caminharam um dia inteiro. O imprevisto tomou conta das suas vidas. O caminho conhecido e a rotina, deram lugar à angústia e à anormalidade. Fizeram-se ao caminho. Não há soluções, há caminhos a percorrer.
            Disposição 2.1. – Procuram por Jesus. Aquele que é procurado justifica, com razões de sobra, o esforço do retorno e a recompensa da espera no reencontro. Não era uma procura qualquer. Era a força do amor que multiplica o desejo da procura. Na raiz estava o Amor. Só encontra quem por amor procura o que é importante e indispensável encontrar e conservar no coração. O encontro do que vale e a sua conservação no coração é tudo. “Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?”. Essas perguntas atingem o coração de Maria, que é Mãe. Atingem e frutificam – porque podam… - o coração de todos os que procuram. O coração é o lugar para fecundarem todos os nossos desejos de procura, com a força do Amor. Conta o esforço de obediência à procura interior: enquanto fidelidade “na sabedoria, na estatura e na graça”. Nossa admiração será (já é…) reconhecimento.
           (*)FONTE: Resumindo, seguimos de perto, apenas com poucas «divagações»: AZEVEDO, Dom Walmor Oliveira, “Voltaram à sua procura” in Na Escola do Salvador, Editora PUC Minas, Belo Horizonte, 2009, pp.301-304. Obs. Registo de nota para-litúrgica de humor divino: por duas vezes, os «Diáconos Permanentes, diferentes em duas paróquias…» - de irrepreensível generosidade a toda a prova…-, não leram o Evangelho próprio; uma das vezes, foi outro o do Ano A, ou B… o que fala dos pastores… S. Mateus!?, e não o do ano C, de Lucas; na outra vez antecipando já o dia de Nossa Senhora, Mãe de Deus… voltando aos Anjos. Nunca interrompi, pois a minha infindável lista de «atos falhos», não mo permitiria. Graças a Deus que na assembleia já há leigos a dizer: -Sr. Padre não foi lido o evangelho indicado!? Tudo para reter, também que eu me perdi (e perco repetidamente) nas homilias, até aonde há «pré-texto», mesmo ausente e desprogramado!? E, também, me encontro no humor divino que me procura a mim na contramão!? Assim me aconteceu, assim apreendo a ler, isto é, a ser encontrado durante a procura. Por: Pedro José, Gafanha da Nazaré/Encarnação, 30-12-2012. Caracteres (esp.incl. com notas): 3178.





sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

BEM-AVENTURANÇAS DA FAMÍLIA


 
Georgino Rocha | Comissão Justiça e Paz - Aveiro
A família de Jesus, Maria e José, inspira um modo de vida onde brilham valores altamente humanizantes para todos os tempos. Enuncio, apenas, alguns em jeito de bem-aventuranças e faço votos para que a família estruturada e feliz continue a atrair e a mobilizar as energias de quem se dispõe a promover o bem integral da humanidade.
Feliz a família que se preocupa mais em ser um lar do que em ter uma casa, em dialogar a sério do que em falar simplesmente de algo que ocorre, em partilhar o que possui e tem do que em dar uma esmola ou fazer um empréstimo beneficente, em viver a fé cristã do que em recorrer a orações devotas e a ritos religiosos, em cultivar o amor oblativo sobrepondo-o a tudo do que em ter gestos ocasionais de tolerância e desculpa, em confiar nos filhos e honrar os anciãos, em cuidar dos mais frágeis e incluir os marginalizados, em construir progressivamente uma sociedade melhor do que em apreciar os bens acima das pessoas, em alimentar receios e preconceitos, isolar-se no egoísmo do “salve-se quem puder” e temer o futuro enegrecido pela insegurança.
Felizes as famílias que se esforçam por ser sementes de novas famílias, alicerçadas no amor heterossexual fiel e fecundo, abertas à relação recíproca dos seus membros, inseridas e solidárias na sociedade, crentes e confiantes na amizade de Jesus Cristo, o peregrino de todos os caminhos da vida e o defensor justo de todas as causas humanas.
A família humana – dizia-o João Paulo II na ONU – significa o contributo fundamental que o cristianismo pode dar à tarefa educativa: cada um é atendido conforme as suas necessidades, todos vivem relações de reciprocidade e fazem circular os dons de gratuidade, avivam a consciência da mútua dependência, habilitam-se para ocupar o seu lugar e desempenhar a sua função.
Família humana, comunidade natural recriada pelos seus responsáveis onde velhos e novos, frágeis e fortes, sãos e doentes, homens e mulheres crescem na bondade e alimentam a alegria de viver.





segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

QUE DEVEMOS FAZER?


Georgino Rocha – CDJP-Aveiro
Pergunta simples que manifesta a vontade da coerência de atitudes com a descoberta da verdade. Pergunta feita, não individualmente mas em conjunto, por multidões, publicanos e soldados que se dirigem a João Baptista. Pergunta que desvenda a eficácia do anúncio da Boa Nova, a força do testemunho de João e a acutilância da sua palavra.
A resposta, segundo narra Lucas, sai pronta e assertiva: repartam os bens, pratiquem a justiça, amem e promovam a paz. Ontem, como hoje. Àqueles que a ouvem nas categorias apresentadas segundo a organização social de então ou em linguagem mais do nosso tempo: os homens da violência e da guerra, os profissionais da máquina administrativa e da fiscalização legal, os reguladores dos circuitos comerciais e respectivos produtos.
Hoje, face à escassez crescente de bens para uns e o acumular de riqueza para outros, repartir é a palavra de ordem portadora de boas notícias; face à corrupção e à fraude, a
verdade e a honradez constituem imperativo ético e jurídico; face a comportamentos individuais e insensibilidade de minorias abastadas urge contrapor atitudes solidárias, fruto da consciência crítica e libertadora.
A sábia resposta de João levanta uma dúvida ao povo ouvinte. Não será ele o Messias? A expectativa era enorme e fazia parte do património de esperança de Israel. Não, não sou – responde sem reticências. E, em jeito de esclarecimento, adianta: “está a chegar quem é mais forte do que eu, e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias”.
O olhar e o coração dos ouvintes convergem agora naquele que é a novidade de Deus, que vem “joeirar” os corações, e destrinçar o trigo do bem e a palha do mal, baptizar com o fogo do Espírito Santo. João cede o lugar a Jesus que credencia aqueles sinais e lhes dá um novo alcance, o de serem sinais/acontecimentos de salvação.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

POR UM NOVO ESTILO DE VIDA

Georgino Rocha   |  CDJP-Aveiro

Chega-nos um apelo forte vindo das margens do Jordão. É seu arauto João Baptista, o profeta precursor de Jesus. A sua voz surge como um grito de alarme, um convite à mudança de modos de vida, um apelo a transformações radicais. E junto ao rio, vai clamando em linguagem telúrica e metafórica: Endireitai o que está torto, alteai vales, abatei montes e colinas, aplanai arestas escarpadas, alinhai veredas e preparai o caminho do Senhor.
Esta mensagem interpelante recebe-a João de Isaías e serve de pórtico de entrada à missão de Jesus. É mensagem de urgência inadiável. “Está em jogo” a salvação que Deus oferece a quem a receber e for coerente, salvação que será vista por toda a criatura. Jesus confirma o alcance da pregação de João e abre-lhe horizontes inovadores. A comunidade cristã credibiliza o seu testemunho na medida em que lhe for fiel. Cada um de nós será autêntico discípulo se adoptar o estilo de vida correspondente.
O estilo de vida “ao jeito de João Baptista” reveste características de justiça, de solidariedade e de mística.
De justiça que ama a sobriedade de bens e cultiva a simplicidade de vida; que reconhece a importância das estruturas e luta por estarem adequadas à dignidade humana e à convivência social com espaço para todos; que denuncia tudo o que oprime capacidades e aspirações, cerceando horizontes e amortecendo sonhos de felicidade. Não se conforma com paliativos, ainda que provisórios, nem com protestos, ainda que veementes, nem com qualquer lenitivo, ainda que benfazejo. A justiça digna do ser humano é o reflexo do Deus justo, da paz na humanidade, da fraternidade entre todos os que se sentam à mesa comum e beneficiam dos bens correspondentes.
Outra característica diz respeito à solidariedade que expressa e renova relações entre pessoas, que gera vínculos entre instituições, contratos e parcerias entre voluntários, espaços de diálogo e convívio entre gerações, elos de proximidade distante entre utilizadores da rede virtual. Não se satisfaz com intervenções pontuais, sempre precisas em caso de emergência, nem com medidas assistenciais, sempre necessárias em situações precárias de miséria.
A solidariedade é “coisa” de Deus que não abdica do seu projecto histórico de ajudar o homem a ser homem, sua imagem e semelhança na criação, e seu filho na redenção salvadora alcançada por Jesus Cristo. Ser solidário “ao estilo de Jesus” é viver o seu amor incondicional a todos em todas as circunstâncias e correndo todos os riscos. Sem homens/mulheres marcados por este estilo de vida, as estruturas ficam esqueléticas, a convivência social torna-se campo de rivalidades, ainda que disfarçadas, e a ordem estabelecida impõe-se como “colete-de-forças” que espartilha os melhores esforços e aprisiona as mais generosas intenções.
João Baptista “bebeu” no deserto o espírito que dá sentido ao seu estilo de vida. Deserto do silêncio para escutar a voz de Deus e assumir a palavra que quer dirigir à “cidade” dos homens; deserto de aparências e supérfluos que realça o “essencial”, o sentido fundamental da existência, deserto de tentações sedutoras que assaltam o coração e procuram reencaminhá-lo para satisfações fugazes.
O apelo/convite está feito. Outrora por João e por Jesus. Agora pela Igreja e pela consciência. Pretende libertar-nos de tudo o que nos amarra e impede de sermos nós mesmos. Por isso exorta-nos a estarmos atentos na escuta e a sermos sóbrios no uso dos bens, generosos na partilha, condoídos na solidariedade, dedicados na proximidade, confiantes no Senhor que vem e já nos faz ver as “pegadas” dos seus passos na nossa humanidade













sexta-feira, 30 de novembro de 2012

TENDE CUIDADO CONVOSCO


Georgino Rocha | Assistente da CDJP.Aveiro
Esta recomendação é feita por Jesus no ensinamento que encerra o seu ministério em Jerusalém. Quem a escuta fica com muitos “sabores de boca” e interrogações na mente. Será advertência premonitória e exortação à vigilância? Alarme despertador da consciência face ao que está a acontecer e preanuncia o rumo do futuro? Convite/apelo a que se tome a vida a sério e se passe da indiferença vulgarizada à observação crítica em ordem a compreender a realidade envolvente?!
Além deste “leque” multicolor de possibilidades, o narrador do episódio – Lucas, o médico escritor – destaca alguns elementos que Jesus terá aduzido e que surgem “enroupados” numa linguagem especial, própria para iniciados, a apocalíptica. O ponto de convergência de todos está centrado nas “coisas” últimas do tempo histórico e no advento das realidades futuras.
Os ouvintes tinham vivido situações desoladoras como a da guerra judaica e a matança subsequente, a destruição do Templo e a ruína religiosa provocada pelo vazio espiritual, a perplexidade angustiante face ao futuro que parecia estar cativo de um presente fechado. Este cenário desolador serve de “pano de fundo” à admonição “tende cuidado convosco” que Jesus se encarrega de fundamentar. E aduz razões de atenção vigilante aos acontecimentos, de ânimo levantado e de postura inteligente, de coração liberto e disponível, de oração constante e de esperança activa.
Os discípulos podem assim crescer na certeza de que a libertação está próxima e aguardar o encontro definitivo com o Senhor, o Filho do homem (nome usado por Jesus para desvendar a sua humana divindade e indicar o tipo da sua missão sofrida). Esta certeza constitui a marca de qualidade da fé dos cristãos e é reafirmada no Credo apostólico. Este encontro vai acontecendo em gestos solidários e atitudes fraternas e será consumado na comunhão da família de Deus quando toda a humanidade atingir a realidade definitiva e estiver nos braços do Pai.
“Tende cuidado convosco” – repete-nos, hoje, Jesus Cristo -, observai o que está a acontecer, olhai para o vosso mundo interior e examinai os vossos critérios de vida, vede as ondas de solidariedade no meio de tantas desgraças, acreditai que outra organização da convivência humana é possível e trabalhai por ela com a força da esperança e a eficácia da caridade e da justiça. Contai com a minha presença renovada e intervenção discreta para dar alento e persistência aos vossos esforços. E um dia, todos juntos em comunhão familiar faremos a festa do universo e dos nossos irmãos em humanidade.









terça-feira, 27 de novembro de 2012

Semana Social 2012–Porto

Logo
Comunicado Final da Semana Social Porto 2012
A Semana Social do Porto, em 2012, procedeu a uma reflexão sobre os desafios atuais ao Estado Social e à Sociedade Solidária. A Igreja assume a necessidade de encontrar sinais e iniciativas de esperança que se contraponham à crise, propondo uma mais eficiente partilha de recursos, uma justiça fiscal equitativa e uma avaliação rigorosa dos serviços públicos. O Estado Social deve ser discutido e pensado não por urgências financeiras, mas de modo a corresponder às exigências da coesão económica e social, da justiça e da dignidade humana.
Como disse o Bispo do Porto, D. Manuel Clemente: “Foram sociedades solidárias que se constituíram em Estados sociais. (...) Antes, logicamente antes, do Estado social está a sociedade solidária, que o precede, alimenta e extravasa.” Nascido na revolução industrial e depois dos trágicos conflitos mundiais do Séc. XX, o Estado Social tem de ser visto nas sociedades desenvolvidas contemporâneas sob a influência da questão demográfica, da quebra de taxas de natalidade e do envelhecimento da população. Neste sentido, o Estado Social reporta-se à sociedade toda, uma vez que tem a ver com a criação e consolidação de condições de coesão e de confiança entre todos.
A Doutrina Social da Igreja tem alertado para a necessidade de encontrar respostas que permitam uma articulação efetiva entre o Estado e as iniciativas solidárias. A reforma do Estado Social tem, assim, de se basear: na proteção de todos os cidadãos, no equilíbrio entre a livre iniciativa e a igual consideração de todos, no entendimento do destino universal dos bens da Terra, na dignidade do trabalho e na promoção do emprego, na justiça distributiva entre grupos sociais e gerações, na complementaridade entre igualdade e diferença, na subsidiariedade e na participação de todos. Como afirma S.S. o Papa Bento XVI, na Encíclica Caritas in Veritate: “ O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil, sem no entanto se reduzir a ela, criam sociabilidade” (nº39).
Assim, não podemos deixar na penumbra o tema do desemprego estrutural e da preservação do trabalho humano. A economia para as pessoas exige a dignificação do trabalho e a promoção do emprego em condições de igualdade e justiça, devendo romper-se o ciclo vicioso que considera a pobreza como inevitável e a desigualdade como uma fatalidade. Deste modo, impõem-se assegurar a solidariedade entre pessoas e gerações e nesse sentido houve a apresentação de iniciativas assentes em redes de proximidade, na criatividade e na inovação social, na responsabilidade das famílias e das comunidades, designadamente perante os desafios do envelhecimento e da solidão. Importa encontrar novos estilos de vida, capazes de articular sobriedade e desenvolvimento. A reforma do Estado Social não pode esquecer a assunção concreta dos riscos sociais e a compatibilização da sustentabilidade financeira e da justiça distributiva, importando romper o descontrolo do endividamento e pôr cobro à escalada do desperdício e da destruição do meio ambiente. Do que se trata é de considerar princípios de ética pública que ponham a dignidade da pessoa humana no centro da vida política, social e económica. Como afirmou Luciano Manicardi “longe de representarem duas dimensões opostas, justiça e caridade podem e devem encontrar-se: a justiça é o rosto social da caridade”.
A segurança social, a educação, o serviço nacional de saúde são responsabilidades inerentes à defesa do bem comum e à salvaguarda da proteção de todos. A noção de serviço público não é confundível com a ação do Estado, pelo que o Estado de direito deve fortalecer-se e consolidar-se através de iniciativas sociais autónomas. A justiça distributiva tem de se ligar à ideia de diferenciação positiva, que não pode confundir-se com assistencialismo, uma vez que os mais carenciados são os que necessitam de mais apoios. O valor da poupança e do trabalho têm de ser incentivados, por contraponto ao endividamento e em defesa da equidade. As desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão devem ser contrariadas através de instrumentos públicos e de iniciativas solidárias, através do sistema fiscal, da subsidiariedade e da cidadania ativa.
Nestes termos, os cristãos são chamados a viver a caridade na verdade, o que reclama uma prática verdadeiramente humana, uma ação de proximidade e o compromisso com a justiça. Para tal, importa que os cristãos se interessem, estudem e aprofundem a Doutrina Social da Igreja, nas famílias e comunidades, para que possam fazer a leitura das realidades de cada momento à luz dessa doutrina, que tem o mérito de ser transversal e aplicável a todas as famílias políticas.
Neste Ano da Fé, a Semana Social Porto 2012 afirma que há uma esperança cristã que tem de ser princípio e critério que, sobretudo em tempo de crise, cabe aos cristãos inscrever na organização social e na participação política.
Outros Documentos







Documentos da Semana Social | Porto 2012

ESTADO SOCIAL E SOCIEDADE SOLIDÁRIA

Casa de Vilar - Porto | 22 a 25 de Novembro

PROGRAMA

22 novembro
16h00 _ Abertura do Secretariado

23 novembro


09h30 _ Sessão de abertura
D. Manuel Clemente | Bispo do Porto e Vice-Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
D. Jorge Ortiga | Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana
Professor Guilherme Oliveira Martins | Coordenador Nacional das Semanas Sociais
10h30 _ Conferência
| Sociedade Solidária e a responsabilidade da Igreja
D. Jorge Ortiga | Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana
| Presidente da mesa Ana Maria Braga da Cruz | Associação Coração Amarelo
12h30 _ Intervalo para almoço
14h30 _ Sessão plenária
| Caridade e solidariedade, papel dos cristãos numa sociedade mais solidária
Lino Maia | Presidente da CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade
| Presidente da mesa Fernanda Rodrigues | Universidade do Porto
16h00 _ Grupos de trabalho
| O desemprego estrutural e a preservação do trabalho humano
Marisa Tavares, Universidade Católica Portuguesa | João Proença, UGT | Manuel Carvalho da Silva, Investigador e Professor Universitário do CES-Lisboa | António Faria Lopes, Faria & Irmão, Leiria
| Presidente da mesa Rogério Roque Amaro | ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)

| Pobreza e desigualdade: novas respostas sociais
Ana Cardoso, Centro de Estudos para a Intervenção Social | Isabel Jonet, Banco Alimentar contra a Fome | Palmira Macedo, Universidade Católica Portuguesa
| Presidente da mesa: Eugénio Fonseca | Cáritas Portuguesa

| Solidariedade entre gerações, família e envelhecimento: como estamos a responder à nova realidade?
André Azevedo Alves, Universidade Católica Portuguesa | Manuel Brandão Alves, Lisboa | João Wengorovius Meneses, TESE, Associação para o Desenvolvimento
| Presidente da mesa Maria do Rosário Carneiro | Comissão Nacional Justiça e Paz
24 novembro

10h00 _ Conferência
Luciano Manicardi | Comunidade Monástica de Bose
| Presidente da mesa José Luis Carneiro | Presidente da Câmara de Baião
12h15 _ Lançamento livro de Luciano Manicardi (“A Caridade dá que fazer” – Edições Paulinas)
12h30 _ Intervalo para almoço
14h30 _ Sessão plenária
| A reforma do Estado Social e a Doutrina Social da Igreja
Guilherme d’Oliveira Martins | Coordenador Nacional das Semanas Sociais
| Presidente da mesa Manuel Castro Almeida | Presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira
16h00 _ Grupos de trabalho
| Reformular o Estado social: novos riscos sociais, sustentabilidade e justiça
José Manuel Moreira, Universidade de Aveiro | Jorge Bateira, Universidade de Coimbra | Américo Mendes, Universidade Católica Portuguesa
| Presidente da mesa Adriano Moreira | Academia das Ciências de Lisboa

| Novos estilos de vida: sobriedade e desenvolvimento
P. Lino Maia, CNIS | Filipe Pinto, Leigos para o Desenvolvimento | P. José Tolentino Mendonça, Universidade Católica Portuguesa | Abel Cunha Rodrigues, Movimento das Comunidades de Vizinhança
| Presidente da mesa José Silva Peneda | Conselho Económico Social

Manuela Silva, Lisboa | Francisco Sarsfield Cabral, jornalista | Alfredo Bruto da Costa, Comissão Nacional Justiça e Paz
| Presidente da mesa Manuel Pinto | Universidade do Minho
21h30 _ Evento Cultural Concerto de órgão na Igreja da Lapa - Filipe Veríssimo (organista)

25 novembro
12h00 _ Eucaristia
| Sé Catedral do Porto, Presidida pelo Bispo do Porto, D. Manuel Clemente

terça-feira, 23 de outubro de 2012

ESTADO SOCIAL E SOCIEDADE SOLIDÁRIA


Casa de Vilar - Porto | 22 a 25 de Novembro
semana social 2012

«Portugal: o país que queremos ser»


No dia 3 de Novembro a Comissão Nacional Justiça e Paz promove a sua conferência anual ( Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian), em Lisboa. Tendo como tema «Portugal: o país que queremos ser», procurará promover uma reflexão sobre o País, no quadro do mundo globalizado.
Estamos perante desafios importantes da nossa cultura e identidade; num tempo de crise, que também é de oportunidades para repensar modelos de vida e de felicidade individuais e coletivos, e rever instituições, com vista a torná-las mais justas e mais humanas. É tarefa que deve ser participada e que, por isso, impõe de forma clara que cada um se reconheça artífice da construção coletiva.
Programa e inscrições em www.ecclesia.pt/cnjp

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Não digamos mais Amen!


 

       ”Nunca o olho do ávido dirá, assim como não o dizem jamais o mar e o Inferno: a mim basta” Mateo Alemán (1547-1614), escritor espanhol (in Público,24.09.2012) que retrata ainda bem o que acontece nas “Ruas de Madrid”, séculos depois…, numa Europa que não sabe gostar si mesma e por tabela arrasta para o fundo a “Ideia-de-Europa”, como bem-estar-colectivo, à qual ninguém quer ajudar, mas diante da qual “todos” querem repetir no modo-de-viver. Instala-se a “lei da selva”; esquecemos o Amor como fruto da Justiça e da Dádiva. Não respeitamos mais as crianças e os idosos. É tempo de voltar ao essencial. Há uma tristeza de barriga-cheia e sonhos ausentes!? Na terra, no mar, nos livros e nas ferramentas (de suor e sem poluição…), bem como dentro de cada um de nós, estará o trabalho apagado e útil, de sabermos rezar com a Cruz-de-cada-dia, isto é, não roubarmos mais o Pão-de-cada-dia, a quem de Direito, por Dever solidário. Não digamos mais Amen!

Pedro José, Gafanha da Nazaré/Encarnação, 26-09-2012

terça-feira, 4 de setembro de 2012

PÃO REPARTIDO SACIA MULTIDÃO

 A atitude da multidão denota o alcance da acção missionária de Jesus. Vê o que faz aos doentes e sente-se atraída. Deixa o rame-rame da vida e segue-o. Deleita-se com os ensinamentos que ouve e nem sequer se preocupa com a fome que lhe consome as energias. Experimenta o olhar compadecido de Jesus e aguarda paciente a palavra/resposta às necessidades prementes. Obedece à ordem de Jesus dada pelos apóstolos e senta-se na erva dos campos. Agrupa-se, recebe o pão que lhe é entregue e come até ficar saciada. Conserva o que sobra e deposita-o nas mãos dos encarregados da recolha. Admira a acção extraordinária de Jesus – sinal de uma outra realidade ainda mais sublime - e entusiasma-se tanto que o identifica com o profeta prometido e se propõe aclamá-lo rei. Desolada, vê-o partir sozinho para o monte, como fazia de vez em quando, e fica na expectativa. A desolação da multidão é compreensível. Tudo apontava para Jesus ser o profeta esperado, o rei anunciado, o messias desejado. A beleza e o encanto dos ensinamentos, a irradiação e a proximidade do agir, a autoridade e eficácia da palavra, e tantos outros sinais indiciavam essa possibilidade. E não era engano! Mas Jesus quer positivamente mostrar que o caminho do Messias prometido era outro: o do serviço humilde e despretensioso, o de valorar as capacidades humanas naturais e adquiridas, o de confiar em Deus e bendizer a preferência pelos mansos e humildes, o de enfrentar e superar as adversidades, ainda que “pagando” dolorosamente o respectivo custo, o de realizar o projecto que Deus lhe confiara, ainda que ficasse só e incompreendido. O episódio da “multiplicação” dos pães é apresentado pelos evangelistas como um paradigma da realização deste projecto. Ontem como hoje, as multidões têm fome de toda a espécie de pão que corresponde a todas as dimensões do ser integral da pessoa humana. Fome de pão é grito por uma vida digna, por um acesso razoável e equitativo aos bens de todos, por uma liberdade segura, por um amor inquebrantável e solidário, por uma participação responsável na promoção do bem comum, por uma aceitação respeitosa e valorativa da relação com o transcendente, com Deus que historicamente se configura de tantos modos e se humaniza em Jesus Cristo. Fome de pão é grito de denúncia de tudo o que privilegia uns e explora outros, dos mendigos sem nada e dos ricos cheios de si mesmos e dos bens. Saciar esta fome é direito/dever de todos. O diálogo de Jesus com Filipe e André, embora simbólico, é conclusivo. A multidão vivia do ganho diário. Não havendo trabalho, ficava sem provisões. Nesse tempo, mais de 70% estava sujeita a esta contingência. A contratação era feita na praça pública. A paga da jornada por inteiro equivalia a um denário, importância indispensável para a alimentação do dia. Sem ela, havia fome e mais fome, tantas vezes, acumulada pela falta sucessiva de trabalho, do pagamento do salário, da exploração e da fraude. A esta luz, como podia a multidão ir à cidade para comprar pão, como sugerem os apóstolos? Insensatez ou provocação? Descartada esta hipótese, Jesus continua preocupado com a fome da multidão. E dá um passo em frente no diálogo: Responsabiliza os apóstolos por arranjarem alimento suficiente e não apenas um bocadinho para cada um. Tarefa árdua e inconcebível. Apesar de tudo, a confiança no Mestre leva-os a procurar. Encontram um rapazinho com farnel de dois peixes e cinco pães. Convidam-no a ceder o que tinha e levam-no a Jesus. (Grande simbolismo está contido neste gesto simples do jovenzinho!). E a maravilha acontece. A oração de bênção faz do farnel uma “fonte de abastecimento” constante com pão fresco e pronto a ser servido pela comunidade dos crentes. Tal o sentido escondido nos cinco pães e nos dois peixes. A fome no mundo constitui um desafio permanente à consciência da humanidade e da Igreja. Para cooperar com Deus, senhor de todos os bens, e ser agente de intervenção na sociedade de todos, sem excepção. A celebração da eucaristia constitui o memorial sacramental desta responsabilidade histórica. Em cada domingo, o Senhor Jesus nos intima: dai-lhe vós mesmos de comer. E como os apóstolos, somos impelidos a conjugar esforços, a ceder farnéis, a partilhar criteriosamente e a não deixar que nada se perca. Georgino Rocha, Justiça e Paz Aveiro

segunda-feira, 30 de julho de 2012

VINDE COMIGO E DESCANSAI
 “Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco” é o apelo e a recomendação de Jesus, após ter acolhido e ouvido os discípulos regressados da primeira experiência missionária. A narração do que acontecera deixava perceber que a missão decorrera bem. As instruções tinham sido observadas. A confiança na palavra do Mestre estava confirmada. O êxito enchia de alegria contagiante o coração de todos. A sobriedade de meios, a simplicidade de vida, a itinerância doméstica, a eficácia do anúncio, a libertação do espírito oprimido pelas forças do mal são credenciais comprovadas e adquirem valor distintivo de quem é discípulo de Jesus em qualquer circunstância. Marcos – o autor deste relato – condensa a atitude do Mestre no apelo à união fraterna e na recomendação ao descanso revigorante. “Vinde comigo” e tomaram a barca a fim de fazerem a travessia do mar de Tiberíades, rumo à outra margem. A travessia converte-se de facto real em símbolo da trajectória humana ao longo da vida, em expressão da evolução do mundo interior de cada um, em sinal da maturidade alcançada por quem deseja saber conviver em sociedade e transmitir uma herança valiosa às gerações vindouras, em ícone da Igreja peregrina, inserida na história, próxima de todos, que sabe comtemplar e agir “a tempo e fora de tempo”, como testemunha São Paulo. A barca ia deslizando sobre as águas e os discípulos saboreando o ambiente repousante na companhia do Mestre. O percurso terá sido o espaço do descanso. Não tanto físico, mas psicológico e espiritual. Constituem dimensões fundamentais de um repouso consistente e gratificante: o estarem juntos, na companhia do Mestre, partilhando experiências e ouvindo comentários de apreço e valorização, o dialogarem sobre expectativas que alimentam sonhos e criam impulsos de aventura audaciosa, o verem-se confirmados no desempenho da missão confiada e, sobretudo, o de serem reconduzidos à fonte da verdadeira alegria – Deus que tem o nome de cada um inscrito no seu livro de bênção. Marcos deixa-nos o núcleo principal de umas boas férias vividas à maneira humana, de forma integral. Manifesta que o activismo é esgotante, que o barulho das multidões é enervante e alienante, que a natureza da vida tem ritmos marcantes para o seu equilíbrio, que a escolha de espaços agradáveis, cheios de luz e silêncio, de ar puro e sol aberto, proporcionam bom ambiente e excelente oportunidade, que o reencontro de cada pessoa consigo mesma e a pacificação do seu espírito – sempre desejados e nunca plenamente alcançados - expressam a qualidade das férias pretendidas e, como acontece com os discípulos de Jesus, vividas com alegria serena e confiante. O descanso faz parte da dignidade humana, manifesta a semelhança original do homem com Deus – ao séptimo dia, Deus descansou - e aponta para o futuro definitivo – felizes os que morrem no Senhor, desde agora descansam em paz porque as suas obras os acompanham – garante o Apocalipse. O descanso convida à contemplação da beleza e da bondade, à experiência fruitiva do lazer, à valoração da sabedoria, ao crescimento humano, à satisfação das carências fundamentais a fim de alcançar uma personalidade amadurecida. O lazer – expressão qualificada do bem-estar humano – pode ser alcançado de formas diversas: leituras amenas, exercícios físicos e espirituais, convívios agradáveis, férias de distensão, práticas desportivas, passeios e excursões, reuniões familiares, celebrações festivas, designadamente as do domingo e a participação na assembleia eucarística, memorial do amor com que Deus nos ama. O descanso e o lazer são vitais para a pessoa cultivar o seu ser integral. Fazem bem ao corpo e ao espírito. O exemplo de Jesus constitui o gérmen das férias dignas da condição humana que a história veio a consagrar em direito e que a legislação laboral vem delimitar. Oxalá que acertadamente para todos!
 Georgino Rocha, Justiça e Paz Aveiro
PÃO REPARTIDO SACIA MULTIDÃO A atitude da multidão denota o alcance da acção missionária de Jesus. Vê o que faz aos doentes e sente-se atraída. Deixa o rame-rame da vida e segue-o. Deleita-se com os ensinamentos que ouve e nem sequer se preocupa com a fome que lhe consome as energias. Experimenta o olhar compadecido de Jesus e aguarda paciente a palavra/resposta às necessidades prementes. Obedece à ordem de Jesus dada pelos apóstolos e senta-se na erva dos campos. Agrupa-se, recebe o pão que lhe é entregue e come até ficar saciada. Conserva o que sobra e deposita-o nas mãos dos encarregados da recolha. Admira a acção extraordinária de Jesus – sinal de uma outra realidade ainda mais sublime - e entusiasma-se tanto que o identifica com o profeta prometido e se propõe aclamá-lo rei. Desolada, vê-o partir sozinho para o monte, como fazia de vez em quando, e fica na expectativa. A desolação da multidão é compreensível. Tudo apontava para Jesus ser o profeta esperado, o rei anunciado, o messias desejado. A beleza e o encanto dos ensinamentos, a irradiação e a proximidade do agir, a autoridade e eficácia da palavra, e tantos outros sinais indiciavam essa possibilidade. E não era engano! Mas Jesus quer positivamente mostrar que o caminho do Messias prometido era outro: o do serviço humilde e despretensioso, o de valorar as capacidades humanas naturais e adquiridas, o de confiar em Deus e bendizer a preferência pelos mansos e humildes, o de enfrentar e superar as adversidades, ainda que “pagando” dolorosamente o respectivo custo, o de realizar o projecto que Deus lhe confiara, ainda que ficasse só e incompreendido. O episódio da “multiplicação” dos pães é apresentado pelos evangelistas como um paradigma da realização deste projecto. Ontem como hoje, as multidões têm fome de toda a espécie de pão que corresponde a todas as dimensões do ser integral da pessoa humana. Fome de pão é grito por uma vida digna, por um acesso razoável e equitativo aos bens de todos, por uma liberdade segura, por um amor inquebrantável e solidário, por uma participação responsável na promoção do bem comum, por uma aceitação respeitosa e valorativa da relação com o transcendente, com Deus que historicamente se configura de tantos modos e se humaniza em Jesus Cristo. Fome de pão é grito de denúncia de tudo o que privilegia uns e explora outros, dos mendigos sem nada e dos ricos cheios de si mesmos e dos bens. Saciar esta fome é direito/dever de todos. O diálogo de Jesus com Filipe e André, embora simbólico, é conclusivo. A multidão vivia do ganho diário. Não havendo trabalho, ficava sem provisões. Nesse tempo, mais de 70% estava sujeita a esta contingência. A contratação era feita na praça pública. A paga da jornada por inteiro equivalia a um denário, importância indispensável para a alimentação do dia. Sem ela, havia fome e mais fome, tantas vezes, acumulada pela falta sucessiva de trabalho, do pagamento do salário, da exploração e da fraude. A esta luz, como podia a multidão ir à cidade para comprar pão, como sugerem os apóstolos? Insensatez ou provocação? Descartada esta hipótese, Jesus continua preocupado com a fome da multidão. E dá um passo em frente no diálogo: Responsabiliza os apóstolos por arranjarem alimento suficiente e não apenas um bocadinho para cada um. Tarefa árdua e inconcebível. Apesar de tudo, a confiança no Mestre leva-os a procurar. Encontram um rapazinho com farnel de dois peixes e cinco pães. Convidam-no a ceder o que tinha e levam-no a Jesus. (Grande simbolismo está contido neste gesto simples do jovenzinho!). E a maravilha acontece. A oração de bênção faz do farnel uma “fonte de abastecimento” constante com pão fresco e pronto a ser servido pela comunidade dos crentes. Tal o sentido escondido nos cinco pães e nos dois peixes. A fome no mundo constitui um desafio permanente à consciência da humanidade e da Igreja. Para cooperar com Deus, senhor de todos os bens, e ser agente de intervenção na sociedade de todos, sem excepção. A celebração da eucaristia constitui o memorial sacramental desta responsabilidade histórica. Em cada domingo, o Senhor Jesus nos intima: dai-lhe vós mesmos de comer. E como os apóstolos, somos impelidos a conjugar esforços, a ceder farnéis, a partilhar criteriosamente e a não deixar que nada se perca. Georgino Rocha, Justiça e Paz Aveiro, 26/07/2012
Entre o eu e o nós: todos necessários, todos envolvidos. O que nos liga, prende ou entusiasma, cada vez que voltamos e nossas comunidades? O que nos verdadeiramente, de casa, e em que direção de interesses/valores nos movemos como «presenças assíduas», faça sol ou chuva? O que faz uma pessoa sentir-se membro efetivo e afetivo? O que alimenta o sentido de «referência» e «pertença» a uma comunidade, grupo/instituição, ideal/fé, nação/tradição secular, etc. Mais perguntas que queremos aprofundar ainda no âmbito do «impacto do sentido comunitário». Como pessoas as nossas perturbações negativas diante das perguntas anteriores, surgem no equilíbrio entre dois pólos: autonomia e vínculo. O vínculo durante o crescimento opõe-se à autonomia. Esta vai sendo conquistada por meio de ruturas. No momento da maturidade, percebe-se a importância do vínculo, já não pela dinâmica da necessidade imposta, mas pela compreensão social do seu sentido. Aqui está o ponteo decisivo. Entramos no jogo da nossa liberdade, e para fora da comparação, ela não pode ser deixada “à loteria da marcação dos penaltis”. Diante da sentença “minha/nossa liberdade termina onde começa a liberdade do outro”, defendemos uma versão mais profunda: “minha/nossa liberdade começa onde começa a liberdade do outro”. O outro é visto não como o fim da nossa liberdade, mas como início, parceiro, potenciador da nossa liberdade. Sem ninguém, nunca serei livre. Sou livre junto com os outros. O vínculo comunitário experimentado enquanto «referência» (a counidade apoia e é apoio; informa e deve, sobretudo, formar no número, cor e feitio…), ou enquanto «pertença» (a comunidade permite a identificação, até por discriminação positiva: pobres sempre os tereis!? Somos propriedade e atribuição de Deus, na pessoa do Irmão, meu/nosso próximo, e nunca devemos ser expropriados da nossa liberdade íntima de consciência a caminho da realização). Através deste vínculo de referência e de pertença, acordamos para a dimensão social que inspira, e também transpira, a nossaMissão Jubilar: «destina-se a todos e conta com todos». Vamos caminhar na certeza da capacidade de relacionamento, na necessidade de conviver, na riqueza do encontro com os outros. Mais livres seremos, se trabalhando e rezando em comunidade, cada vez que escolhermos as tarefas e as oportunidades que Deus possa inspirar. «Todos necessários, todos envolvidos». Pedro José, Gafanhas da Nazaré/Encarnação, 28-06-2012, caracteres (incl. esp), 2358. In Timoneiro, nº646, Julho/2012.

domingo, 20 de maio de 2012

JUPAX EUROPA-ACÇÃO CONCERTADA DE 2012 | mobilizar os jovens para lutar contra a exclusão, a intolerância e o racismo na acção política



A Comissão Nacional Justiça e Paz publica e divulga o documento intitulado Mobilizar os Jovens para Lutar Contra a Exclusão Social, a Intolerância e o Racismo na Acção Política, aderindo deste modo à Acção Concertada de 2012 da JUPAX EUROPA-Conferência das Comissões Europeias Justiça e Paz.
Neste documento, adaptação à realidade portuguesa do texto original da JUPAX EUROPA intitulado Investir nos Jovens para Combater o Racismo e o Extremismo Político, a CNJP apela à reconstrução da confiança dos jovens no sistema político, através da sua participação numa sociedade multicultural, que recusa a exclusão social, a intolerância e o racismo.
Até à presente data subscreveram este documento as Comissões Diocesanas Justiça e Paz de Aveiro, Leiria-Fátima, Portalegre-Castelo Branco e Setúbal.


                  MOBILIZAR OS JOVENS PARA LUTAR CONTRA A EXCLUSÃO, A INTOLERÂNCIA E O RACISMO NA ACÇÃO POLITICA
A Europa atravessa uma crise profunda que atinge a generalidade dos cidadãos e em particular os jovens. De facto, estão criadas as condições para um número crescente de jovens ver o futuro com apreensão e medo Não se vislumbram formas de obter meios que garantam uma vida digna, própria de uma sociedade que promove a justiça e a equidade. Muitos sentirão que o tempo que gastaram na formação académica foi perdido porque não vão conseguir encontrar emprego para as suas habilitações. O recurso à emigração revela-se para outros um caminho cheio de dificuldades. Por outro lado, muitos jovens entendem que Governantes e detentores do poder económico não levam a sério esta situação que afecta a juventude europeia e ameaça o seu futuro
Entre outras consequências, os jovens ficam vulneráveis às influências de grupos de extremistas políticos com a intenção de desestabilizar os fundamentos democráticos das nossas sociedades. Neste quadro, é importante apelar aos Líderes Europeus que privilegiem o investimento nos jovens. É necessário garantir-lhes educação, formação, segurança e bem-estar. Se isso não for feito, é natural que muitos jovens se envolvem em acções xenófobas e extremistas em quadro de exclusão social e intolerância, ao invés de lutarem por uma sociedade respeitadora dos direitos humanos.
O Papa Bento XVI na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2012 – Educação dos Jovens para a Justiça e Paz - refere: «Nestes tempos sombrios a nossa esperança para o futuro está nos nossos jovens, cujo entusiasmo e idealismo pode oferecer uma nova esperança para o mundo». Mas o Papa não ignora, como é referido, a alienação e frustração experimentada por muitos jovens: «É importante que este mal-estar geral e seu idealismo subjacente recebam a devida atenção em todos os níveis da sociedade». Isto requer envolvimento das lideranças políticas, instituições financeiras, entidades patronais, Instituições de ensino, meios de comunicação, instituições de voluntariado, entre outros.
A educação (em sentido amplo) é de fundamental importância no combate ao racismo e extremismo político. E no que concerne à educação dos jovens há que ter em conta o seguinte:
a) A educação deve incluir valores. Os valores são tão importantes quanto o conhecimento. E deve-se ter presente que a dignidade da pessoa humana deve estar no centro de qualquer sistema de educação.
b) O Sistema de ensino deve preparar os jovens para viver numa sociedade globalizada e multicultural. A compreensão de culturas diferentes é um factor de enriquecimento e uma forma de quebrar o medo por aquele que é diferente. O próprio sistema de ensino deve proporcionar aos jovens experiências de inclusão e de multiculturalidade para que, para além de teoricamente adquirirem conhecimentos sobre estes temas, possam também vivê-los e experimentá-los. É adquirindo laços que ultrapassem as diferenças que os jovens podem abrir os seus horizontes da tolerância.
c) A educação é necessária para fomentar a participação e a cidadania. Ela pode ajudar a quebrar ciclos de pobreza e privação. Os sistemas de educação precisam preparar os jovens para participar na sociedade, e que inclui, de modo particular, a vida política.
d) A educação tem que levar em conta os desafios específicos enfrentados pelos jovens hoje. Vivemos num mundo globalizado e marcado pelo desenvolvimento de tecnologias de comunicação muito desenvolvidas. E como lembrou o Papa Bento XVI na encíclica «Caritas in veritate» «Enquanto a sociedade se torna mais globalizada, faz-nos vizinhos mas não nos faz irmãos (e irmãs)». A educação tem que preparar os jovens para este mundo novo fornecendo-lhes instrumentos de análise que impeçam a manipulação de ideias e a despersonalização dos indivíduos.
A Comissão Nacional Justiça e Paz, focalizada nas situações que envolvem os jovens, e em uníssono com a Conferência das Comissões Justiça e Paz da Europa, faz alguns apelos:
· «Pedimos aos nossos líderes políticos para levar a sério a necessidade de reconstruir a confiança dos jovens no sistema político, protegendo o seu bem-estar presente e futuro, como parte integrante da estratégia de recuperação económica».
· «Chamamos os nossos Ministros da Educação para garantir que, mesmo em difíceis circunstâncias económicas, a promoção de oportunidades educacionais para todos os jovens continua a ser uma prioridade».
· «Sublinhamos que a educação precisa de ser mais que desempenho académico. Ela deve preparar os jovens para participar numa sociedade cada vez mais multicultural e capazes de atingir o seu pleno potencial através do desenvolvimento cultural pessoal».
· «Pedimos aos nossos jovens que as suas preocupações com o futuro impliquem uma participação activa na sociedade, a busca de um conhecimento maior do sistema político e um esforço permanente em defesa da justiça e da paz.
Entende a Comissão Nacional Justiça e Paz que este conjunto de constatações, reflexões e apelos fazem todo o sentido na actual situação portuguesa. O desemprego juvenil atingiu números muito elevados. O emprego está sujeito à precariedade . As remunerações do 1º emprego são baixas e o sub-emprego foi-se generalizando. . Estas situações, potencialmente perigosas, podem gerar sentimentos de exclusão e intolerância, que desencadeiam o racismo e o extremismo político. Em Portugal há sinais ténues desta realidade, mas igualmente preocupantes. É necessário tomar consciência e agir sobre as causas do mal-estar, e progressivamente tentar eliminá-las. A responsabilidade é de todos: governo, políticos, empresários, movimentos sindicais, homens e mulheres de cultura e participação social, religiões e igrejas, jovens, crentes e não crentes.
Comissão Nacional Justiça e Paz
Maio de 2012














quinta-feira, 10 de maio de 2012

Família em crise ou crise da família?

Administração e economia de valores


Como ponto de partida para reflexão, vem-nos à memória a tese, defendida por um economista, do casamento como fenómeno despido de fundamentos éticos/morais/religiosos, para dar lugar a um conceito basicamente económico: o contrato matrimonial e, por isso, a família, existe e subsiste enquanto for economicamente vantajoso para cada um dos seus membros, realçando assim a eficiência económica do casamento e da família que por este se constitui.
Ainda em sede de sínteses do ano que findou, foi noticiado que o ano de 2011 assistiu a um decréscimo do número de divórcios, fato que, em concordância lógica com aquela tese, foi relacionado com a situação de crise financeira que as famílias portuguesas experienciam, como resposta das mesmas à necessidade, num contexto de crise, de aproveitamento dos recursos económicos, evitando a dispersão de meios com agravamento de custos individuais.
O sobreendividamento das famílias é uma realidade nacional, e uma realidade da qual as próprias famílias (só) agora, postas a descoberto pelo contexto da crise financeira, da dívida soberana e do euro, tomaram consciência: disso é cabal manifestação o crescente número de apresentações de pessoas singulares à insolvência que a atividade judiciária revela e que, no ano de 2011, ultrapassou o número de processos de insolvência de pessoas coletivas.
Quer se entenda como um risco natural da economia do mercado associada à expansão do mercado de crédito, quer se enverede pela teoria da responsabilização do devedor como alguém que se excedeu (ressalvadas circunstâncias imprevisíveis, como o desemprego ou a doença), o dito sobreendividamento teve e tem como efeito, inevitável, a redução, senão mesma privação, das disponibilidades financeiras a que as famílias se (auto)habituaram, coadjuvadas então pela massiva publicitação e quase venda forçada do falacioso crédito fácil (com reduzida ou mesmo nula análise de risco e, por isso, alienada da capacidade de endividamento do mutuário).
Esta realidade, de cariz económico-financeiro, produz imediatamente problemas sociais; na sua maior profundidade, quando faz perigar a subsistência condigna e o acesso à educação e à saude.
Mas outras realidades sociais sobressaem. As alterações forçadas no habitual – ainda que a crédito - nível de vida material induzem à exclusão do convívio social e também familiar dos sobreendividados que, afastados do mercado de crédito e do mercado de bens e de serviços a que acediam e frequentavam, se colocam ou são colocados à margem dos padrões, espaços ou níveis que até aí partilhavam - diga-se, em boa verdade, numa coexistência circunstancial do acaso, centrada na materialidade das coisas, independentemente da sentida felicidade por elas proporcionada, desprovida, a mais das vezes, do sentido do dar e receber próprio do conceito de partilha (não vamos mais longe: o que é que tantos pais, mães, filhos, e até avós, fazem, reunidos, num sábado ou domingo à tarde, dentro de um centro comercial?, em busca da pílula dourada da felicidade?).
Confrontadas com a impossibilidade de manterem e prosseguirem o estilo de vida que para si (e para os outros) vinham hasteando, desponta e cresce o desânimo, a falta de autoestima, sentimentos negativos com forte pendor destrutivo no plano individual e que, qual doença contagiosa, se propaga à família – pais e filhos -, acabando por influenciar negativamente a capacidade e a vontade de reorganização financeira e profissional da pessoa e da família que com ela se constitui. O desânimo conduz ao isolamento, à ausência de esforço, aspirações e projetos de vida.
Num raciocínio de silogismo, somos então levados a concluir que as famílias estão fragilizadas pelo isolamento em boa medida em consequência da sua viciação nas propostas e ofertas de um consumo para satisfação de desejos imediatos, despidos de projeções no futuro.
Da repetição de comportamentos para a habitualidade, e desta para o comodismo reivindicativo de pretensos direitos adquiridos, facilmente se caiu – e assim nos encontramos - na faliciosa construção da perca de status como fator de risco para a dignidade humana assim concebida - consumista, imediata, de facilidades adquiridas, num contexto de multiplicação de necessidades artificialmente criadas, à margem do originário projeto da evolução qualitativa do homem (a escravidão sem realização).
Naturalmente que todos temos consciência que aqueles não são os ingredientes para a construção ou reabilitação do futuro. É tempo então para reflexão, uma que afaste os sentimentos de miserabilismo, comiseração e fatalidade que tende a enraizar-se, até porque se assim pensarmos, assim nos convencemos, e temos instalada a depressão nacional.
No plano da imediatez das soluções, a apresentação à insolvência representa, para os que assim se dispõem, ao aliviar da (de)pressão – muito (mas muito) mais do que a satisfação dos interesses dos credores, visa promover a reabilitação do endividado, desde logo como agente económico. O chamado fresh restart, alcançado pelo perdão das dívidas que permanecem por cumprir depois de esgotado o património do devedor e de decorrido um determinado período de provação (5 anos).
Importaria então por em prática e em toda a linha todo o conteúdo que ao fresh restart pode imputar-se, encarando o sofrimento pessoal e coletivo como a febre denunciadora de um mal sistémico e corrosivo que se impõe corrigir, tratar, curar, pela diferença de comportamentos, de atitudes, de revitalização dos valores que justificam a humanidade. Muito mais do que pelas medidas exógenas que nos são impostas, importaria evitar a repetição do fenómeno, sobretudo pela mudança que vem de dentro, construída em cada família e por ela alargada à sociedade enquanto célula que a sustenta.
E quanta esperança no futuro se razões houvesse para assumir que a redução do número de divórcios radica já nessa mudança, da família como núcleo de afeto e solidariedade gratuita – na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza – e não meramente assente em princípios económicos racionalistas e individualistas!

Amélia Rebelo
Juiz do Tribunal do Comércio | Comissão Justiça e Paz (Aveiro)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

DAR A VIDA COMO O BOM PASTOR


Georgino Rocha – CDJP-Aveiro
João lança mão de uma pedagogia de sinais, imagens, metáforas, alegorias e de outros recursos típicos da cultura dos destinatários dos seus escritos para apresentar a identidade de Jesus, sem reduções nem exageros. Após a cura do cego de nascença e do diálogo tenso que a envolve, a narrativa faz-nos pressentir a necessidade de uma afirmação clara, de uma definição precisa, de uma interpelação forte dos interlocutores. E recorre à parábola do rebanho que tem pastores mercenários e um outro que o não é.
Deste contraste emerge, dando continuidade à tradição bíblica do pastoreio, a apresentação de Jesus como aquele que oferece a sua vida por toda a humanidade (o rebanho congregado ou disperso, o que ouve a sua palavra ou ainda não, o que tem consciência de beneficiar da sua proximidade ou vive numa insensibilidade de indiferença), aquele que conhece cada um pelo seu nome e lhe presta os melhores cuidados, o que liberta do espaço fechado do redil e de tudo o que dá segurança, mas oprime e reduz horizontes de liberdade, o que vai à frente no longo caminhar da história e mostra haver sempre um futuro a aguardar, o que sabe acompanhar no percurso da vida, nas suas fases de tranquilidade ou de turbulência (caminho lhano, barrancos, solavancos, vertigens). Aquele que tudo faz para que tenhamos vida e vida em abundância. O Bom Pastor dá a vida pelos seus que são todos os seres humanos, toda a humanidade, sem qualquer restrição. Assim o rememora o celebrante na consagração do vinho na eucaristia ao dizer: “Este é o cálice do meu sangue, sangue da nova e eterna aliança, derramado por vós e por todos”.
O espanto dos ouvintes não podia ser maior. Habituados que estavam ao estatuto dos mercenários, que surpresa, que contraste, que provocação! Os assalariados faziam normalmente um contracto de trabalho, com regras definidas, em que se previam situações de perigo iminente. Ocorrendo uma destas situações de risco sério de vida (como seria a incapacidade real de fazer frente ao atacante feroz e possante), o guarda do rebanho não era obrigado e oferecer-lhe resistência até à morte, a ser “comido” antes das ovelhas. Não desertava por cobardia, apenas procurava salvar o possível.
A classificação que Jesus dá a este proceder parece cáustica: desertor perante o mínimo sinal de perigo, guarda sem qualquer preocupação de vigilância, mercenário interessado apenas na paga que lhe é devida por contracto, fugitivo que busca a segurança e aguarda que a tormenta acalme e passe, – não lhe importam os estragos -, e ele possa começar a gerir os destroços até o rebanho se refazer ou o dono intervir para ajuste de contas.
O Bom Pastor identifica-se com a sorte dos que lhe estão confiados. Reconhece-se dom de Deus Pai – o Pastor por excelência – que se faz doação em Jesus Cristo e nas suas atitudes benevolentes. Quebra a lógica do dar para receber, do entregar-se para ser retribuído. Nesta relação não há troca, nem mais-valias e menos ainda malfeitorias. Como acontece frequentemente entre os humanos. O único desejo de Jesus, belo e generoso Pastor, expressa-se na vida e sua qualidade, abundante para todos, digna para cada um.
Este desejo faz-se projecto de vida a crescer que se vai realizando de muitos modos, mas sobretudo por meio das comunidades cristãs, onde a voz é escutada na proclamação da Palavra e a vida é alimentada na celebração da eucaristia. Comunidades que irradiam o rosto do Bom Pastor, solidárias com os que exercem a pastorícia – bispo e padres -, com os que assumem outros serviços e ministérios – diáconos e agentes pastorais – com os que discreta, mas persistentemente~, promovem o apostolado capilar, procurando ir aonde se encontra o necessitado.
As boas comunidades desafiam os seus pastores, ajudam a moldar as formas mais adequadas do seu serviço, apoiam-nos nos momentos de turbulência e desânimo, abrem-lhes horizontes de esperança pelo seu dinamismo e audácia criativa. Todos participam, cada um na sua modalidade, na missão do único e belo Pastor – Jesus Cristo que oferece livremente a sua vida por todos nós.