quinta-feira, 25 de setembro de 2014

COERENTES E RESPONSÁVEIS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

As autoridades andam preocupadas e dão sinais visíveis de animosidade. E não era para menos. No templo, coração da religião e centro principal da economia, o Nazareno desafiava tudo e todos: expulsa os comerciantes, derruba as mesas dos cambistas e parte as cadeiras dos vendedores de pombas; acaba com o negócio explorador, denuncia a atitude dos que fazem do templo um covil de ladrões e realiza gestos de cura a cegos e a aleijados, gente marginalizada pela classe dirigente. Cita, em jeito de justificação, a Escritura: “A Minha casa será chamada casa de oração”.

Perante tal atitude, os responsáveis do templo aproximam-se de Jesus e pedem explicações, fazem-lhe a pergunta chave: Para procederes desse modo, que autoridade tens e donde te vem? A questão é séria. Está em causa a legitimidade, a honra e a honestidade, que são a base da sociedade de então. A autoridade consiste na capacidade de influir nos comportamentos dos outros e pode provir do nascimento e da posição social alcançada. O seu exercício era credível se o falar e o agir em público estivessem proporcionados ao estatuto social. Se não, era necessária outra forma de legitimação válida. De contrário, surgia a acusação de a pessoa estar inspirada pelo demónio.

Jesus de Nazaré tinha de se justificar. Recorre a um modo de proceder peculiar e sagaz. Responde com uma pergunta, lançando assim um desafio a quem o interrogava. O recurso à pergunta-desafio resulta plenamente. “O baptismo de João provém de Deus ou dos homens”? Depois de uma discussão clarificadora e calculista, respondem: “Não sabemos”. É que fosse qual fosse a resposta, o comportamento adoptado por estes não era coerente e responsável. De facto, se dissessem: “De Deus”, vinha a réplica: por que não o aceitastes? Ou “dos homens”, temiam a reacção do povo que reconhecia João como profeta. A pergunta hábil do Mestre surtira o efeito desejado. E para o ilustrar Jesus vai mais longe e conta a parábola do pai que diz aos dois filhos para irem trabalhar para a vinha familiar. E surge, de novo, em foco a questão de saber quem procede com coerência e responsabilidade. O Mestre Nazareno “força” a resposta, introduzindo a parábola com a interrogação:
“Que vos parece”? (Mt 31, 28-32). E acertaram em cheio no parecer dado.

De facto, está em maior sintonia com o Pai quem, apesar de dizer não inicialmente, muda de opinião e vai para a vinha; ao contrário, o outro que acaba por não ir, embora tendo-se mostrado a princípio disponível. A capacidade de mudança é uma das grandezas da liberdade humana. Em qualquer fase da vida pode surgir a oportunidade. É preciso estar atento, deixar-se interpelar e não perder o desafio.
Há sempre a possibilidade de um recomeço, de um reencontro, de uma viragem em busca da sintonia com o Pai, de um reafirmar o ser filho em comunhão, de um voltar a redescobrir o bem da família e a querer assumir oportunamente a sua responsabilidade.
Jesus, no desejo intenso de abrir os corações dos interlocutores, aduz o exemplo dos publicanos e das prostitutas. São como o 2º. filho da parábola: do “não” inicial passam ao “sim” generoso e entram no reino dos céus antes de quaisquer outros; os “herdeiros” por excelência deste reino assemelham-se ao 1º. filho e, por isso, são preteridos. Os chefes entenderam bem o ensinamento e, em vez de aceitarem a mensagem e se converterem, aumentaram a vontade de, logo que possível, eliminar Jesus.

Com qual dos filhos nos identificamos? Sinceramente, confesso que me esforço por me assemelhar mais ao terceiro, o narrador da parábola, a Jesus de Nazaré, apesar de tantas limitações. Ele é o Filho muito amado pelo Pai, o sim de Deus a cada um de nós e a todos. Ele é o sim da humanidade a Deus, dado de forma plena e definitiva, coerente e responsável.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

PATRÃO BONDOSO, TRABALHADORES CIUMENTOS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Pedro continua com as suas dúvidas interiores. E quer dissipá-las. Tinha aderido ao grupo do Mestre sem condições. Havia assinado um contrato em branco. Depois de tudo o que viu e ouviu, acha que chegou a hora de o preencher: E desabafa: Deixámos tudo. Qual vai ser a nossa recompensa? Que nos espera no futuro? Com que podemos contar?
Jesus, que conhece bem os corações, dá-lhe uma resposta clarificadora. Aproveita a oportunidade do encontro com os discípulos e lança mão de um costume usual no campo que serve de base à sua parábola: a dos trabalhadores da vinha contratados pelo proprietário. (Mt 20, 1-16).

Este dono da vinha sai de madrugada, às nove da manhã, ao meio-dia, às três da tarde e, ainda, às cinco (uma hora antes de terminar a jornada laboral). Que o levaria a tantas saídas? Que segredo animaria a sua decisão? Que procurava com tanta urgência e preocupação?
De facto, uma grande paixão se esconde nesta azáfama. É o amor que tem à sua vinha, em tempo de colheita, é a consideração que lhe merecem os sem emprego e os tarefeiros, vindos para a praça com alguma expectativa, é a vontade clara de que haja trabalho para todos e a justa remuneração, é desvendar uma nova dimensão do ser humano na qual se espelha a bondade e gratuidade – reflexos qualificados do rosto de Deus.

E os trabalhadores partem, de imediato, para a vinha. Cumprem solicitamente o que lhe é pedido no tempo devido. Sem recriminações nem quezílias. Chegado o fim da jornada, vem o pagamento. E qual o critério usado pelo dono da vinha? Podia ter sido o de entregar a quem trabalhou o dia inteiro o denário combinado e ir reduzindo aos outros conforme as horas a menos que tinham andado no campo. Seria o justo acordado ou subentendido e estimado. E não havia problemas. Seria a aplicação do princípio em voga: a cada um conforme o seu trabalho, a sua produção, o seu mérito. Independentemente da pessoa, da sua necessidade e dignidade. Era o ensinamento dos rabinos, a prática normal entre os judeus e dos trabalhadores contratados. Seria o pensar de Pedro e, por isso, o não saber qual a recompensa a causa da sua aflição.

Mas a parábola apresenta uma outra atitude, um outro critério de actuação. O proprietário vê em cada trabalhador uma pessoa com igual dignidade. Quer atender à sua necessidade e à da sua família (um denário equivale ao indispensável para a sobrevivência diária), quer mostrar que, satisfeita a justiça, há sempre espaço para a bondade e a gratuidade. Mas esta forma de proceder causa ciúmes e inveja a quem se julga com mais direitos. Daí, o diálogo amigável de esclarecimento.

O Mestre de Nazaré condensa, nesta narração, o amor misericordioso de Deus para com todos, a sua benevolência para com os mais desafortunados, o convite a cada um a dedicar-se ao bem da “vinha” ao longo da vida, a aceitar a história como o arco de tempo em que se encontra e realiza a humanidade. Pedro tem aqui a resposta que procurava.
João Paulo II, na exortação apostólica “sobre os Fiéis Leigos”, publicada na sequência do Sínodo de 1987, faz uma interpretação maravilhosa desta parábola e lança um redobrado apelo a que ponhamos as nossas capacidades ao serviço da missão da Igreja nas suas comunidades e no mundo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

SALVOS PELA CRUZ DO SENHOR

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

A visita nocturna de Nicodemos a Jesus, apresentada no Evangelho de João, faz parte da secção narrativa de factos e pessoas que dão o seu contributo para dizer quem é Jesus. Surge após o testemunho de João Baptista que actua em vários cenários, a mudança da água em vinho de qualidade na festa de um casamento em Caná da Galileia, a operação-limpeza do Templo em Jerusalém e o primeiro anúncio da edificação de um novo templo. O autor do 4º Evangelho acrescenta: “Falava do Seu corpo”, afirmação que veio a ser compreendida pelos discípulos, após a ressurreição.

Nicodemos inicia o diálogo com uma certeza: Só quem tem Deus consigo pode realizar os sinais/as obras que Jesus faz; certeza que manifesta o seu conhecimento e a sua cultura e revela a sua capacidade de reflexão e de chegar a conclusões. Certeza que, apesar de consistente, quer ver confirmada, talvez questionada e debatida. Jesus acolhe a sua declaração sincera e dá uma sábia resposta, encaminhando o centro da conversa para o Reino de Deus e para a necessidade imprescindível de “nascer de novo” por meio da água e do Espírito. 

Esta resposta deixa perplexo Nicodemos que a considera muito estranha e impossível, naturalmente pensando. Jesus insiste no que havia dito e, mediante um processo de pergunta-resposta, lança o coração humano “noutra onda”, na realidade profunda do amor de Deus. Recorre a contrastes esclarecedores e interpelantes: Subir e descer, serpente de Moisés e cruz do Filho do Homem, morte e vida, juízo de condenação e amor de salvação.

O contraste “subir-descer” indica-nos a vocação a que todos estamos chamados e o caminho da sua realização: fazer-se humano, apreciar o húmus da nossa comum humanidade, reconhecer o outro como um irmão, solidarizar-se com os seus êxitos e fracassos, alimentar sonhos de vida eterna e de felicidade definitiva, valorizar limitações e desenvolver capacidades, respeitar a criação e as criaturas, defender o equilíbrio da terra e do meio ambiente, situar o espaço local no mundo como um todo e proceder de forma coerente, aceitar-se pecador com necessidade de perdão, acolher o amor de compaixão e misericórdia. Jesus dá o exemplo: Ele, o Verbo de Deus na linguagem de João, monta a sua tenda entre nós, habita na nossa terra, faz-se tão humano que só podia ser Deus (Boff).

O contraste “serpente-cruz” chama a nossa atenção para a importância de erguer a cabeça e saber olhar, de ter horizontes rasgados, de descobrir o lado belo da vida contido nas feridas provocadas pelo veneno de morte de intrigas e ciúmes, de inimizades e malvadezes, pela perseguição injusta ao inocente reconhecido. Este lado belo brota do amor de doação, da entrega incondicional a Deus que realiza o seu projecto de salvação, respeitando – oh admirável modo de proceder/condescendência! – a liberdade humana, ainda que usada de modo arbitrário. A beleza da cruz de Jesus no Calvário brilha, em virtude do amor que nos tem, nas cruzes da vida sofrida, na morte humana natural que abre as portas da eternidade feliz, fazendo acabar o sofrimento e saborear o colo de Deus Pai.

A Igreja vive do amor que faz da maldição da cruz ignominiosa a bênção exuberante da ressurreição humana, do inverno glacial da indiferença e do ódio a primavera florida de envolvimentos voluntários pelo bem dos outros; primavera promissora de um novo modo de estar na vida, de avaliar o que é importante, de aspirar sempre ao bem maior, de querer positivamente construir a civilização do amor alicerçada na doação de Jesus Cristo.

O sinal da cruz, feito em oração pessoal ou conservado em espaços públicos, testemunha este propósito cristão, esta prioridade dada ao bem do outro, esta vontade positiva de desvendar novas dimensões ao viver quotidiano, esta certeza inamovível de que só o amor solidário espelha a dignidade inalienável que é pertença de todos os seres humanos. Sem a compreensão do sentido da cruz, os seus sinais podem incomodar e serem removidos. Mas a sociedade fica mais pobre, mais desumana, mais individualista, mais “atolada” no seu casulo egoísta e consumista. A cruz por excelência é agora a pessoa, toda a pessoa. O exemplo vem de Jesus Cristo, por vontade de Deus. 

Bendita cruz implantada na terra e erguida aos céus. Em ti brilha o pior e o melhor da humanidade, a paixão injusta de sexta-feira santa, a aurora feliz da Páscoa da ressurreição. Oxalá sejas sempre gloriosa! E a criação inteira possa entoar os aleluias de alegria e festa. E a humanidade toda saborear o amor que dá sentido aos gemidos e gritos de agora.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A inconsciente subserviência

 

Pedro José Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

1. Olhar a realidade e não cair em condenações injustificadas ou juízos redundantes. O esforço de repensar os comportamentos. Observar a força da obediência educada. Observar a cedência caótica ao “passar por cima de”. A experiência “etnográfica” de estar numa fila, em pé, à espera de um atendimento absurdo mas redentor. Isso na dimensão "kafkiana" experimentado em variados serviços de atendimento público. Resolver assinar mais um Referendo insatisfeito.

2. A Rede de Comunidades feita de memórias. A Igreja como funciona verdadeiramente? Creio nesta Igreja que se faz humilde e informal. Não existe a possibilidade de análise em si mesmo. Porque o Mistério sagrado envolveu-se com a sociologia laica. Mas quanto em nós haverá que vamos fazendo de modo subserviente? Qual a linha que separa a liberdade institucional da mentira social? Evangelho líquido, não obrigado. Em estado puro é preciso saber dosear. Mistagogia ética como fio condutor.

3. A Obediência não é subserviência nem rebelião. A Vontade de Deus “é” o Bem Comum. Neste regresso após quase 4 anos ao Maranhão, concretamente, a Chapadinha (e Mata Roma, onde fui pároco na vida real, com a nomeação canónica de administrador paroquial, em dia de St. Agostinho, celebrei com o Povo de Deus a eucaristia da “Amizade Evangélica”…). Comprei, posteriormente, o Missal para rever a “Missa da Reconciliação” e a “Missa com as Crianças”; e só assim professar que não “pratico” heresias litúrgicas.

4. Grita-se e cala-se, num só tempo, a subserviência da Dependência. Credo apolítico. Duas coisas terríveis: falta Água, no domínio público; e aumenta a Violência, no domínio privado. Água é vida. Violência é morte. Duplo homicídio coletivo. Escrevinhar sobre isso não sou capaz. No dia de apresentação oficial do livro: 8 autógrafos! Poderia ter sido bem melhor? Foi excelente assim mesmo. As subserviências passam por gostar de discorrer, futuramente, quer sobre a “metafísica da tentação”, quer ainda soletrar uma imaginária “carta de amor ao Brasil”.

5. Nas causas das nossas conivências, ou não, estarão, também, o alimentarmos as nossas subserviências. Não queremos e não podemos estar em permanente Conflito Evangélico. Os filhos das trevas são mais inteligentes!? Daí o terrível passo dado no sentido da submissão interior, resta-nos «tanto quanto», uma inconsciente subserviência pela absoluta falta de Consciência Crítica. Entranha-se um Medo secular no presente faminto de Sentido. Não-faço-Tudo-o-Que-Devia. Faço tudo aquilo que me parece razoável: enquanto dádiva da Vontade Generosa.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O PERDÃO DAS OFENSAS, ATITUDE SUBLIME

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

O agir humano é o nosso espelho mais polido, reflectindo capacidades e limitações. Sobretudo na relação com os outros, fora da qual perde vigor e acaba por se esvaziar a humanidade que nos qualifica. Surge então a desconsideração do outro como pessoa, em gestos e palavras, que traduzem sentimentos negativos, de distanciamento, de crítica amarga e ostensiva, de ofensa infundada.

Como refazer a relação de modo integral? Só a resposta positiva, ainda que penosa, nos repõe a dignidade ferida, supera o fosso aberto, vence as distâncias criadas. Outras atitudes mantêm e podem agudizar o sentimento negativo e ser tolerante passivo, agravar a emoção sentida e alimentada, pagar na mesma “moeda”, retaliar com vingança, excluir o indesejado do círculo de relações, deixar “cair os braços” e esperar que uma crosta se imponha e gere a indiferença. Ou pura e simplesmente, recorrer ao tribunal civil que, apesar da sua nobre função, não resolve questões de consciência.

A tolerância activa é uma atitude de profundo respeito que revela lucidez e coragem, ponderação e sentido de oportunidade. Não é sinónimo de imposição incriminatória, nem de reacção moralista e uniformizadora.  Pelo contrário, traduz o reconhecimento da dignidade ferida, da convivência desfeita, da relação cortada naqueles que estão chamados, por natureza e pela bênção de Deus, à harmonia das diferenças legítimas no todo da humanidade. Quando degenera, dá origem ao tolerantismo que, indiferente ao bem comum, deixa andar as “coisas” ao sabor da corrente, tenha ela o colorido que tiver.

A convivência na sociedade e, ainda mais, na comunidade cristã (familiar, paroquial, diocesana) conta sempre com as atitudes mais nobres e sadias das pessoas. Os caminhos, antes de chegar às autoridades, passam pela aproximação e confiança, pelo relacionamento e diálogo, pelo reconhecimento e aceitação incondicional do outro. Neles se encontra Deus a dar suporte ao esforço e a alimentar a persistência e ousadia. Embora profundamente unidas, a acção é um fruto da pessoa e, como tal, diferente. A dignidade diz respeito à pessoa; a “maldade” ofensiva atinge a acção. Considera-se e ama-se aquela e, por isso mesmo, detesta-se esta e oferece-se ajuda para ser superada ou, mesmo, sanada a “lesão” provocada na consciência. ( Mt 18, 15-20)

O perdão surge como a atitude mais nobre no processo histórico de refazer os laços quebrados por ofensas humanas. Antes da pena de Talião – olho por olho e dente por dente – a medida da vingança era desproporcional à ofensa. Depois, ganha raízes a solidariedade que une os irmãos entre si e entre os judeus, membros da mesma raça. Finalmente, a mensagem cristã apresenta o exemplo admirável de Jesus de Nazaré e do movimento por ele iniciado – a Igreja.

O perdão de Jesus é para todos, até para os seus inimigos e algozes. A súplica do Calvário fica como testemunho da sua vida e lema emblemático do comportamento dos seus discípulos. Estêvão, Paulo de Tarso, e tantos outros, sem esquecer João Paulo II que vai à prisão em gesto de misericórdia, constituem exemplos luminares desta atitude sanante que muitos realizam na maior simplicidade e discrição.

A consciência humana foi evoluindo e atingiu uma fase de humanização jurídica no que diz respeito às pessoas que praticam actos ilícitos. A justiça tem leis que a legitimam. E ainda bem! Oxalá a sua prática as honre. Não se pode ignorar o crime em todas as suas formas, a desfaçatez e a arrogância em todos os seus modos que espezinham a dignidade dos outros e o valor dos seus bens, a corrupção, a fraude e tantas outras “ofensas” à dignidade humana, ao bem comum da sociedade e ao Estado de direito.

A atitude cristã acolhe e promove a justiça, como passo fundamental do processo de reconciliação. No entanto, o horizonte humano permanece aberto a novas dimensões, das quais se destaca o perdão incondicional, proporcionado por quem é ofendido, ao seu ofensor.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Convite

Colóquio_papa Francisco

SABER SOFRER, O EXEMPLO DE PEDRO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

 


Pedro fica perplexo com o que ouve a Jesus (Mt 16, 21-27). Contrastava tanto com o que havia experimentado. Realmente, era frustrante. Sentia-se desiludido, ele que tinha recebido tão rasgado elogio: Feliz és tu, filho de Jonas, por teres descoberto que eu sou o Messias; ele, o porta-voz, do grupo apostólico, que recebe a promessa de ser o alicerce da construção da Igreja e de ficar com as chaves da entrada no Reino; ele, que deixa o nome de família, e aceita ser chamado de modo novo – o da missão que lhe é confiada.
Perante o contraste, o impulso do coração leva-o a agir. A simples hipótese do sofrimento anunciado e do enfrentamento, com os chefes religiosos e políticos, poder conduzir à morte de cruz, constituía um verdadeiro tormento. Espontâneo e generoso, como era, resolve aconselhar o Mestre. Toma-o à parte e contesta-o abertamente. A sós, pensava, seria mais fácil dizer-lhe tudo o que entendia ser prudente e sensato, ele que não largava a ideia de um Messias vitorioso, libertador, capaz de desarmar todos os seus inimigos e instaurar a nova ordem anunciada. À medida que fala, dá conta que o semblante de Jesus se altera. Parece que transmite irritação profunda, fúria incontida. E de facto, a resposta ouvida é tão áspera e dura que o surpreende completamente. Fica em silêncio, sabe Deus com que amargura, a “gemer” a reprimenda e a tentar ouvir as instruções que Jesus ia dando aos discípulos. E por quanto tempo estas palavras o hão-de acompanhar: Põe-te no teu sítio, não queiras desviar-me do caminho traçado, tem em conta as coisas de Deus, não sejas ocasião de escândalo, retira-te, Satanás.
O sofrimento de Pedro situava-se, sobretudo, a nível moral e espiritual: sentir-se enganado, ver o futuro hipotecado, ser envolvido numa empresa com falência anunciada, ouvir denúncias claras de desvio religioso, de não estar em sintonia com Deus, mas de servir as pretensões de Satanás.
Jesus entende bem esta situação e vem iluminá-la com os ensinamentos aos discípulos de todos os tempos. A cruz da vida é a marca da existência e o distintivo do cristão fiel. Importa compreendê-lo e saber gerir o seu potencial de energias que nos humanizam. A partir desta convicção, quantas pessoas não fizeram um percurso de aprofundamento no seu mundo interior e relacional, na descoberta e valorização das capacidades, no aproveitamento do tempo e na auto-estima, no voluntariado de todos os tipos e na entrega a Deus, no serviço humilde das famílias e comunidades?! A humanidade, inclusivamente o património literário, artístico e cultural, fica mais rica com a sabedoria apreendida no sofrimento e expressa nas mais diversas formas históricas.
A cruz da vida faz parte da nossa condição humana. Querer evitá-la a todo o custo é pretender o impossível e renunciar a ser pessoa no desabrochar das suas potencialidades. Tantas árvores ficam raquíticas porque não tiveram um vento temperado que as fustigasse para lançarem raízes profundas, engrossarem o tronco e expandirem a ramagem!
Há sofrimentos que representam a medida de uma vida verdadeiramente humana; constituem o companheiro incómodo do nosso caminhar. Há cruzes que surgem também quando damos as mãos em acções e projectos que pretendem defender a vida e promover a sua qualidade para todos.
Saber sofrer por uma causa justa é desafio de aprendizagem constante. A educação sem o realismo da vida não alcança o seu objectivo fundamental: ajudar a pessoa a ser pessoa em todas as dimensões. As técnicas estão ao serviço da pessoa integral. Quem quiser alcançá-lo, ainda que progressivamente, tem de aprender a sabedoria de gerir o peso inevitável da cruz e o avanço das ciências que tendem a suavizar ou eliminar a dor.
Uma certeza acompanha os seres humanos, discípulos de Jesus: A pessoa amadurece na medida em que sabe renunciar à satisfação imediata e caprichosa dos seus desejos e impulsos, em benefício de valores que dão sentido nobre a um projecto de vida, coerente e solidário.