sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ÉTICA NAS FINANÇAS uma questão de Justiça e Paz


Reflexão para a Quaresma de 2013. Documento conjunto da Comissão Nacional Justiça e Paz e das Comissões Diocesanas Justiça e Paz do Algarve, Aveiro, Beja, Braga, Bragança-Miranda, Coimbra, Leiria-Fátima, Portalegre-Castelo Branco, Porto, Setúbal e Viseu.
1. Pode parecer estranho que as Comissões Justiça e Paz (CJP) escolham o tema das finanças para a sua mensagem quaresmal de 2013. Acontece, no entanto, que, na linha dos anteriores, também o ano de 2013 continua dominado pela crise financeira, a qual tem sido enfrentada com medidas que afectam gravemente o bem-estar e as condições de vida da população portuguesa. Acresce a circunstância, altamente preocupante, de que as políticas adoptadas, apesar de não surtirem os efeitos esperados, foram recentemente reforçadas no Orçamento de Estado para 2013. (1)
2. Os malefícios associados à situação do país são conhecidos e não carecem de novas descrições exaustivas. Não se pode, todavia, deixar de lembrar que o país está sujeito a um Programa de Ajustamento que tem tido consequências muito pesadas sobre as condições de vida da população, em virtude dos cortes nos salários e nas prestações sociais, aumento da carga fiscal e subida pronunciada dos níveis de desemprego. Assiste-se, igualmente, a um forte sentimento de desânimo, na ausência de perspectivas credíveis de recuperação da economia, de percepção de que os sacrifícios não estão a ser equitativamente distribuídos, e de desconfiança sobre se os sacrifícios impostos levarão a resultados aceitáveis. Por outro lado, ressalta a situação de muitas famílias que contraíram empréstimos para aquisição de casa, no pressuposto de que os seus recursos não sofreriam quedas bruscas e permitiriam satisfazer os compromissos assumidos.
Com a perda de empregos e de rendimentos, que sobrevieram, essas famílias passaram a conhecer dificuldades, ou mesmo a impossibilidade de pagarem as prestações, o que as coloca em posição particularmente vulnerável ou na iminência de perderem a sua casa. Impõe-se a busca de soluções que evitem o despejo e sejam adaptadas à situação actual.
3. A comunidade cristã não pode deixar de ter presente este quadro nacional, estas famílias e estas pessoas, ao entrar no período anual de preparação para celebração da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, que inaugurou a nova criação.
É na Páscoa de Jesus, que também é a Páscoa dos seus discípulos e da humanidade inteira, que a nossa esperança encontra as suas raízes. E se é certo que esta Quaresma se insere no Ano da Fé, é forçoso que também seja vivida sob o signo da Esperança e da Caridade.
4. A tendência mais frequente ao pensarmos em problemas como os que o país enfrenta actualmente, é a de procurarmos vias de solução que dependam de cada um e de instituições, públicas e privadas, dedicadas à ajuda assistencial. Esse esforço é indispensável para satisfazer as carências mais urgentes. Acontece, no entanto, que essa ajuda, se bem que necessária, não atinge as causas profundas dos problemas. É hoje consensual que aquelas causas se situam, a um tempo, a três níveis: o interno dos países, a esfera de espaços mais largos, como é, por exemplo, o da União Europeia, e, finalmente, o nível global. É a todos esses níveis, consoante as possibilidades de cada um, que os cristãos deverão intervir, para que a história dos homens se aproxime cada vez mais da história da salvação.
5. A «assistência social» de que acima falamos, não se confunde com o «assistencialismo». Este último compõe-se de um conjunto de acções facultativas, aleatórias e discricionárias, concedidas pelos serviços públicos ou instituições particulares, e que concentra o mérito no prestador. Diversamente, a «assistência social» tem subjacente a noção da dignidade humana do beneficiário, a que estão associados direitos indeclináveis. Estamos no domínio da justiça. A situação de crise pode justificar que se modifiquem algumas formas concretas de assistência, mas não pode prejudicar os direitos indissociáveis daquela dignidade. Do ponto de vista ético, que é o nosso, esta é uma incumbência primeiramente do Estado, porque se trata de um aspecto fundamental do bem comum, mas que se alarga a toda a sociedade civil, enquanto sujeito colectivo da prática da justiça e da solidariedade.
6. As principais características da evolução recente das condições de vida da população portuguesa são acompanhadas persistentemente por taxas negativas de crescimento do PIB, que permitem falar numa «espiral recessiva». Em todo este processo sobressai uma falta incompreensível de políticas que fomentem o crescimento económico que seja criador de emprego e promova uma justa distribuição do rendimento e da riqueza. Portugal é, de momento, o país mais desigual da União Europeia. O alargamento do prazo de amortização da dívida junto das entidades representadas pela Troika e o abaixamento dos respectivos juros também são factores que poderão permitir honrar os compromissos do âmbito do programa de ajustamento com menos sacrifícios para o povo. Algo neste sentido acaba de ser conseguido. Devemos saudar a iniciativa e o resultado, e, ao mesmo tempo, reconhecer que não basta.
7. Perante o flagrante insucesso do modelo de política seguido em 2012, a insistência de idêntico modelo, nalguns aspectos agravado, em 2013, pode ser eticamente inaceitável. O povo, as pessoas e as famílias não podem servir de objecto de experiências de política económica de sucesso altamente duvidoso. Ao denunciá-lo, as CJP afastam-se da cumplicidade do silêncio.
8. As CJP acreditam na construção europeia como espaço de Estado-nações que livremente escolhem integrar uma União de iguais, dotada de instituições democráticas próprias. Lamentam que o processo de decisão vigente conceda predominância injustificada aos membros economicamente mais fortes, em prejuízo da vontade e das necessidades dos mais fracos, e não pode aceitar que, por razões de incapacidade ou de estratégia, o governo do país tenha optado por uma postura objectiva de seguidismo político perante os ditames do(s) poderoso(s). O que está em causa é demasiado grave para ficar ao sabor dos gostos de um ou outro governante. É fundamental que o processo de integração Europeia envolva a criação de estruturas e legislação que vão ao encontro de maior justiça e solidariedade entre os países-membros.
9. Como salientamos acima, sabemos que as causas da crise que abrange o mundo se não limitam à esfera nacional, embora muito haja que pode ser feito a esse nível. As causas são profundas e complexas e, como antes da crise, continuam a ser geridas pelos que, por acção ou omissão, geraram a crise. O que revela, além do mais, a urgente necessidade de uma consciência cívica e política do comum dos cidadãos perante as coisas do mundo.
10. Na sua ainda recente Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2013 (1 de Janeiro), o Papa Bento XVI apontou algumas questões particularmente relevantes, entre as quais as que seguidamente se transcrevem, e que merecem uma leitura atenta e muita ponderação:  
“Para sair da crise financeira e económica actual, que provoca um aumento das desigualdades, são necessárias pessoas, grupos, instituições que promovam a vida, favorecendo a criatividade humana para fazer da própria crise uma ocasião de discernimento e de um novo modelo económico. O modelo que prevaleceu nas últimas décadas apostava na busca da maximização do lucro e do consumo, numa óptica individualista e egoísta que pretendia avaliar as pessoas apenas pela sua capacidade de dar resposta às exigências da competitividade.”
11. Noutro texto, o Papa observaria que no coração da crise actual está a quebra ética que teve lugar em todos os níveis da economia mundial, cada vez mais dominada pelo utilitarismo e materialismo (2). Quer isto dizer que qualquer proposta de reforma do sistema financeiro terá de estar voltada para a resolução desta “quebra ética”, o que pressupõe que, no mínimo: os critérios éticos não podem situar-se apenas na esfera da consciência individual, mas devem ser considerados em todo o processo de tomada de decisão, tanto a nível individual como colectivo; a educação e a formação em matéria de economia e finanças precisam de enfatizar o impacto humano destas actividades, com especial enfoque na justiça social; os nossos compromissos para com a dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento humano integral necessitam de ser inscritos na legislação, com os adequados mecanismos de coacção, a nível internacional e nacional.
Torna-se por isso indispensável reforçar os mecanismos de regulação financeira, a nível nacional, europeu e mundial, através da imposição de um corpus mínimo partilhado de regras necessárias à gestão do mercado financeiro. Vem a propósito recordar o apelo do Conselho Pontifício para a Justiça e a Paz, para a criação de uma autoridade pública de competência universal, “dada a necessidade de respostas, não apenas sectoriais e isoladas, mas sistemáticas e integradas, inspiradas pela solidariedade e pela subsidiariedade, e orientadas para o bem comum universal” (3).
O que está em causa não é uma forma de governança que retire poder às pessoas e as afaste do processo político, mas antes a adopção de um modelo de governança claramente ditado pelas exigências da justiça, da solidariedade e da subsidiariedade. Daí que as instituições internacionais devam intervir para apoiar os estados nas matérias que não podem resolver sozinhos, promovendo o bem comum, acima dos interesses egoístas. Importa assegurar que os mesmos padrões estão a ser aplicados em todos os países, o que permite aos governos introduzir medidas contra a injustiça e a desigualdade, sem receio de que as actividades económicas sejam deslocadas para fora do país pelos investidores ou empregadores.
As políticas financeiras e monetárias não devem prejudicar os países mais fracos, antes devem contribuir para a distribuição equitativa da riqueza mundial, através de formas inéditas de solidariedade fiscal e global. A tarefa de reformar as principais instituições da sociedade pode parecer arrojada, mas a doutrina social da Igreja recorda-nos que as reformas são realizáveis porque todas as nossas instituições são afinal o resultado de escolhas e decisões humanas.
Salienta o Papa Bento XVI: “Causam apreensão os focos de tensão e conflito causados por crescentes desigualdades entre ricos e pobres, pelo predomínio duma mentalidade egoísta e individualista que se exprime inclusivamente por um capitalismo financeiro desregrado.” (4)
12. Por outro lado, “o primado do espiritual e da ética tem que ser restaurado e, com ele, o primado da política – que é responsável pelo bem-comum – sobre a economia e a finança” (5). Para tanto, não basta proceder só à reforma do sistema financeiro. Torna-se necessário utilizar várias aproximações, nomeadamente, a regulação, a educação e a participação de todos, para reforçar os laços entre a actividade económica e o bem-comum da sociedade. Em particular, as igrejas e as comunidades dos crentes são chamadas a reflectir, quer individualmente quer colectivamente, sobre as exigências da fé no contexto dos desafios actuais das nossas sociedades, designadamente: na análise auto-crítica sobre a extensão da nossa participação num sistema económico que falhou na protecção dos mais vulneráveis; na procura de que a actividade financeira das nossas actividades e organizações respeite os mais altos padrões éticos possíveis, promovendo e divulgando boas práticas; na organização e participação no debate público para dar voz aos princípios éticos; na adopção de estilos de vida mais sustentáveis, que impliquem também maior solidariedade para com os irmãos que estão a passar por dificuldades e para com as organiza-ções que trabalham para a justiça social; na escolha dos bancos e dos investimentos que respeitem os princípios éticos, muitas vezes consubstanciados em Códigos de Conduta Ética, que devem ser desenvolvidos e merecer o nosso apoio, quando contribuem para a transparência, a defesa dos Direitos Humanos e a distribuição justa dos lucros.
13. As Comissões Justiça e Paz subscritoras deste documento apelam também aos órgãos políticos do país, designadamente à Assembleia da República e ao Governo, no sentido de:
a) apoiar a criação da autoridade internacional de regulação, acima referida, que seja independente das instituições financeiras e tenha em conta as considerações éticas, designadamente as relacionadas com a eliminação dos paraísos fiscais;
b) manter o apoio à introdução de uma taxa sobre as transacções financeiras, tal como foi proposto pela Comissão Europeia em 2011;
c) subir a participação nacional na Ajuda ao Desenvolvimento, por forma a atingir a meta dos 0,7% do PIB, de acordo com os compromissos assumidos
e que não devem ser esquecidos, mesmo em situação de crise;
d) identificar áreas de regulação adicional – a nível nacional e internacional – de modo a assegurar que a actividade económica esteja em conformidade com a procura da justiça;
e) introduzir legislação destinada a lutar contra a corrupção e a evasão fiscal;
f) procurar, junto do sistema bancário, soluções para as famílias que, sem culpa própria, estejam com dificuldades para pagarem as prestações decorrentes do crédito à habitação e em risco de perderem a casa, sob pena de se vir a assistir a um problema social de vastas proporções.
14. “O obreiro da paz – diz Bento XVI – deve ter presente também que as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia insinuam, numa percentagem cada vez maior da opinião pública, a convicção de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais. Ora, há que considerar que estes direitos e deveres são fundamentais para a plena realização de outros, a começar pelos direitos civis e políticos.”
15. As CJP expressam votos de solidariedade a todos os seus concidadãos e concidadãs. Aos seus irmãos na fé, desejam uma celebração da Páscoa marcada pela paz, certas de que uma maior fidelidade à mensagem do Evangelho de Jesus Cristo dá sentido ao sofrimento e aponta para critérios de felicidade que levam, depois da crise, por caminhos diversos dos que levaram à crise.
3 de Fevereiro de 2013
——————
1 A «ética nas finanças» é o tema eleito pela JPEuropa para a «acção concertada» comum em 2013, das Comissões associadas. A JPEuropa é uma rede constituída por Comissões Justiça e Paz da Europa.
2 Bento XVI, Caritas in Veritate, 2009.
3 Conselho Pontifício para a Justiça e a Paz (2011), Para uma reforma do sistema financeiro e monetário
internacional na perspectiva de uma autoridade pública de competência universal.
4 Bento XVI, (2012), Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2013.
5 Conselho Pontifício para a Justiça e a Paz, ibidem
6 Bento XVI, ibidem



























Sem comentários:

Enviar um comentário