Georgino Rocha | Comissão Diocesana Justiça e Paz - Aveiro
Esta
afirmação não deixa de ser ousada e interpelante, atendendo a quem a
faz. Que assombro manifesta perante os ensinamentos de Jesus na sinagoga
de Cafarnaúm! Que estatuto social e religioso reconhece ao humilde
artesão de Nazaré! Que prenúncio adianta do que virá acontecer no
futuro! “Que tens a ver connosco? Vieste para nos perder” – declara o
endemoniado em altos gritos.
O
episódio ocorre durante a “homilia” na celebração habitual aos sábados,
segundo os preceitos judaicos. Convidado a comentar as leituras, Jesus
adopta um estilo próprio, distanciando-se do método tradicional. Não
cita nenhum dos famosos rabis, como era de “bom tom” para credenciar o
comentário. O que disse, Marcos não o regista, mas não andará longe,
como noutras passagens se afirma, de algo parecido com o que Mateus
conserva na sequência do sermão da montanha ( 5, 21-48). Jesus
reinterpreta com autoridade pessoal o sentido das escrituras e manifesta
o seu conteúdo oculto e inédito. Os ouvintes ficam admirados com a
novidade e interrogam-se sobre o seu alcance: “Que vem a ser isto? Até
os espíritos imundos lhe obedecem!” O que estes intuem, declara-o
convictamente o possesso endemoniado.
A
novidade é manifesta, não apenas em palavras, mas em gestos de
proximidade e de cura. O endemoniado sente-se liberto de tudo o que o
oprime: doença, exclusão, forças maléficas. A sua presença na sinagoga e
a sua intervenção pública causam certa estranheza e revestem uma enorme
carga simbólica. Será o “retrato” da situação religiosa que é
necessário superar? A troca de palavras – não chega a ser diálogo –
entre ele e Jesus parece indiciar algo parecido. O confronto com as
forças do mal personificadas em espíritos imundos ou possessos irá ser
uma constante na missão do Nazareno e, a partir dele, na vida e acção
dos seus discípulos e da sua Igreja.
Outrora
estas forças “disfarçavam-se” em pessoas possuídas por tendências
naturais incontroláveis ou por desvios humanos notórios, pela influência
de seres estranhos ou de espíritos demoníacos. As ciências do
conhecimento biológico e médico ainda não estavam desenvolvidas a ponto
de identificarem a origem destas perturbações esquisitas. Mas os seus
efeitos, sim; estão bem patentes no estigma social típico de todo o
endemoniado, na marginalização religiosa a que era votado o doente, no
estatuto de excluído da sociedade; por isso, a sua condição não contava
nem valia nada, não merecia qualquer consideração.
E
hoje, que forças ocultas ou evidentes mantém as pessoas manietadas e
oprimidas, as sociedades fragilizadas, os estados impotentes, as
confissões religiosas ensonadas e a(s) Igreja(s) incomodada(s)? Parece
claro que refazer o sistema que provocou e mantém esta crise global é
pretender continuar o “fabrico” de empobrecidos em número crescente e o
espezinhamento da sua dignidade, a multidão de silenciados e manipulados
que tardam a tomar a palavra, a legião de indignados que tentam fazer
ouvir a sua voz e a razão que lhes assiste. A base da pirâmide social
alarga-se cada vez mais. E o topo superior afunila-se progressivamente.
As
alternativas vão-se esboçando e dão alguns passos. Adquirem maior
visibilidade os projectos que visam a mudança de mentalidade e a
conjugação de esforços em torno da economia solidária, de participação
activa, de responsabilidade de cada um face ao bem de todos. Que bom
seria, se o critério de acção fosse, pelo menos, a novidade trazida por
Jesus de Nazaré – o Santo de Deus - apresentada de forma inaugural na
sinagoga de Cafarnaúm!