sexta-feira, 30 de outubro de 2015

FELIZES SEREIS POR MINHA CAUSA

 

Georgino Rocha | Justiça e Paz -  Aveiro

Jesus dá esta garantia aos discípulos no início da apresentação do programa que vem realizar em nome de Deus e quePe Georgino Rocha resume em proporcionar a quem nele crer a felicidade plena, exuberante, definitiva. Mateus, o autor da narração, descreve a cena com termos de grande solenidade: depois de ver as multidões, sobe ao monte, senta-se rodeado por eles, começa a ensiná-los proclamando as bem-aventuranças. Mt 5, 1-12. Deixa emergir a figura de Moisés e o episódio do Horeb, das tábuas da Lei e da aliança que Deus realiza com o seu povo. E insinua, desde já, que Jesus é o novo Moisés que não vem revogar, mas elevar à perfeição o pacto outrora celebrado na montanha sagrada.

Ser feliz é a aspiração maior do coração humano. A tudo recorre para ver se o alcança. A história documenta abundantemente este facto que a experência pessoal e familiar confirma, armazenando momentos intensos de exuberância, situações prolongadas de satisfação e bem-estar, e comprovando que tudo é passageiro, deixando um vazio amargo que deseja preencher e superar constantemente.

"A autêntica felicidade torna-se presente na nossa vida quando saímos do nosso eu egoísta, nos descentramos e voltamos o nosso rosto, as nossas mãos e o nosso coração para o outro. No serviço, a entrega e a felicidade dos outros encontramos a generosa prenda que nos envolve como uma veste nova" (Tolstoi).

Jesus é muito claro na sua mensagem. Unir-se a Ele e professar a fé faz-nos ser peregrinos confiantes da felicidade prometida e está ao nosso alcance. Assumir a sua causa é antever, desde já, os sentimentos mais íntimos que brotam do seu agir, do seu estilo de vida, do seu coração liberto, da sua misericórdia que de todos se compadece, aproxima e ajuda.

Seguindo os seus passos, são felizes os que não têm o coração amarrado pelo dinheiro nem atado pelos bens; os que apreciam uma vida sóbria e saudável e repartem com generosidade; os que não se deixam aprisionar pelos desejos egoístas nem pelos apetites descontrolados.

Felizes os que sabem sofrer por amor e se preocupam com as dores alheias e as agruras da vida, com os gritos das vítimas inocentes e os gemidos das criaturas; se preocupam e tomam iniciativas para lhes dar consolo e despertar a consciência humana da indiferença malévola em que deixou cair o sofrimento anónimo. Felizes os que encontram em Ti, Senhor, a coragem e a fortaleza para descobrir o sentido positivo de tantos dramas humanos.

Felizes os que sabem perdoar e aceitam o perdão que lhes é dado, os que acolhem agradecidos o teu amor misericordioso, os que são amáveis e respeitadores, os que esquecem ofensas e amam os inimigos. Tal como tu fizeste, Senhor.

Felizes os têm um bom coração, limpo de preconceitos e maldades, capaz de ver o melhor que há nos outros, de ser justo nas apreciações e de não confundir a trave com o sisco de que fala o Evangelho ao tratar da relações fraternas; felizes os que são sinceros e verdadeiros, e vivem em vigilância atenta ao que nasce do coração: pode ser o melhor ou o pior.

Felizes os que trabalham pela paz, que semeiam o respeito e a concórdia, que previnem tensões e conflitos, antecipando-se ao que é previsível e desinflacionando emoções negativas ou amaciando temperamentos agressivos; felizes os que deixam a sua comodidade e conforto e se pôem a caminho para remover os obstáculos à paz e ajudar na reconciliação dos desavindos e dos adversários, ainda que tenham de sofrer a incompreensão e, mesmo, a perseguição e a morte.

Felizes os que mantém viva a tua causa que é a do Reino dos Céus e não se cansam de lançar as sementes no campo do mundo, sem quererem guardar no seu celeiro o trigo desta vida que termina, mas preferem vê-lo germinar em frutos da Vida que não acaba. Felizes os que acreditam no Céu.

A felicidade que Jesus nos garante brilha na imensa multidão das pessoas bondosas e santas que, hoje, celebramos. E não na “macacada dos halloween (etimologicamente véspera do dia de todos os santos e não noite de bruxas) nem das fantasias tenebrosas das almas do outro mundo que atormentam os mortais. São de todas as condições, raças e cores. Estão presentes em todas as épocas da história. Também na nossa, em que surge com novo fulgor na tragédia dos cristãos mártires. Também nas vítimas inocentes de leis iníquas, à semelhança do que aconteceu contigo, Senhor, que foste eliminado por cruéis algozes e glorificado por Deus Pai. Felizes sereis por minha causa!

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

sobre alguns reflexos d´alma

 

Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

“Não ver. Não ver o que se quer. Não querer o que se vê.

Coisas tão diferentes, que compõem os nossos dramas”.

OMP, in “Missão: o que o amor não pode calar” - Guião Missionário 2015/2016, p.36.

 

Pedro José L. Correia - Aveiro

[1]Não ver” – O Não-Ver da existência é “negatividade” pura; e ela não rima com “felicidade”. Eis nossa ilusão impura do “se calhar”. Se calhar para nosso bem o não ver é um ver melhor. Ver claro é um deixar de ver escurecido. Porque é Noite. E um ver indiferente é fechar-se nos olhos da opulência cínica ou do consumo desmedido. Não ver que me irrito facilmente. Não ver o sorriso genuíno. Não ver lágrima ferida. Não ver que estou cansado de dizer sim-sem-pensar. Não ver que o «carácter» não tem pátria, nem religião, e muito menos, salário base. Cumprir-se enquanto Pessoa é o mínimo que podemos aspirar. Cultivar o olhar interior. O Desejo purificado. Curar a cegueira da visibilidade, isto é, ver com o Coração apenas e sempre. Como Deus nos vê.

[2]Não ver o que se quer” – O “falso positivo” é aquilo que não está inscrito no número do telemóvel no click do polegar indeciso. Para ver muito, até mais que o necessário: ligam-se os máximos; os holofotes dos jornais; impõe-se interesses e caprichos; no fundo, o paradoxo do mentiroso verdadeiro. Para ver do lado da humanidade: diante do sol, somos a sombra; diante da luz artificial, apenas acendemos uma vela. Isso mesmo: para controlar a conta mensal da luz elétrica; basta a Coragem de participar numa Procissão de Velas. Uma pequena Procissão de Esperança nocturna. Ver com a inteligência da vida, no sentido próprio da palavra, e deixaremos de ser impróprios para os relacionamentos quotidianos. Ter o Sangue purificado Nele. Curar a cegueira da possibilidade, isto é, a preocupante e preocupada doença das "selfies".

[3]Não querer o que se vê” – Ninguém gostaria de ter a sua roupa interior exposta na praça pública. Fazemos isso e muito mais, por «coisíssima nenhuma». Dá cá aquela palha e já está arrumado o caso. Onde reside o «sacramento da iluminação»? Pelo batismo sou um iluminado que se converte passo a passo. Só autenticidade, mesmo no limite da nossa não-aderência à Verdade. Isto é complexo: do erro-a-erro para chegar ao graça-a-graça. Olhar o Futuro mais-que-imperfeito dos nossos lusos verbos irregulares. Uma nova gramática evangélica. Aqui somos invadidos: pelo “more is more” que passa a traduzir-se por “less is more”. Descobrimos que não sabemos falar línguas estrangeiras e que isso não contribui para a Salvação dos néscios?! Conversão de purificação. Curar a cegueira da impossibilidade, isto é, da invisibilidade.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

ORAGEM! ELE ESTÁ A CHAMAR-TE

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Pe Georgino Rocha

     Esta exortação “faz a ponte” entre o grito confiante de Bartimeu e a atenção que Jesus lhe quer dispensar. Condensa e exprime o desejo recíproco do encontro, do diálogo pretendido, da compaixão suplicada. Mc 10, 46-52. Evidencia a situação de quem está retido à beira dos caminhos da vida e dos que, livremente, vão fazendo o seu percurso, integrando-se nas multidões ou acolhendo-se a grupos de preferência. Lança luz sobre a família na pluralidade das suas configurações, a atitude sábia a cultivar preconizada pelo Sínodo que, hoje, conclui os seus trabalhos, os belos testemunhos de quem vive e contempla o amor conjugal na sua luz irradiante, os pedidos sentidos e persistentes de tantos divorciados e recasados que esperam uma oportunidade para verem a sua dignidade e integração mais reconhecidas na Igreja.

     Marcos narra o episódio do cego de Jericó, colocando-o, pedagogicamente, após a tensão surgida entre os apóstolos por causa de saber quem entre eles é o maior e antes de se “fazerem ao caminho” que o Mestre decididamente ia tomar rumo a Jerusalém. Aqui, se desvendará quem é o primeiro no reino de Deus: o que, por amor, a tudo se sujeita, mesmo à morte de cruz. O autor pretende “desenhar” o perfil do verdadeiro discípulo.

     Bartimeu sente as limitações e sofre as consequências resultantes do seu estado, numa sociedade legalista e discriminatória, A necessidade força-o a pedir esmola, saindo para os caminhos por onde passavam os transeuntes. Um dia ouve dizer que Jesus de Nazaré ia a passar e dá largas à sua voz reprimida, gritando: “Filho de David, tem compaixão de mim”. Esta súplica mostra a sua confiança em ser atendido, pois, como outrora David protegia os seus súbditos necessitados, assim agora – pensa o cego – Jesus lhe iria valer, compadecendo-se da sua situação.

      A multidão tenta abafar o seu grito, repreende-o e manda-o calar. Ele, porém, não está disposto a perder a oportunidade e insiste. Vence com a sua persistência as tentativas de o silenciarem. Que lição para os tempos que correm! Resistir à onda avassaladora da dignidade humana, à nivelação igualitária de todas as expressões do amor sexuado, à redução privada do destino universal dos bens, à discricionária solidariedade subsidiária, à imposição dos modelos de educação e à exclusão de qualquer outro tipo que não seja a escola estatizada, à proibição do direito dos cidadãos à escolha da educação e de expressarem em público a sua fé. Dar voz aos gritos abafados dos idosos solitários, às lágrimas dos espoliados dos bens de sustento, às dores das vítimas da conjuntura económica, aos gemidos dos “sem voz” nesta crise alarmante.

     Jesus detém-se, manda-o chamar e espera. O recado chega depressa. Que dita não terá vivido Bartimeu naquele instante! E ainda por cima com o apoio amigo de quem lhe transmite a mensagem. Momentos únicos na vida. “Coragem! Ele chama-te”. Que alegria sentirão as famílias ao verem-se chamadas pela Igreja na sua ternura de mãe a percorrerem com ela os caminhos da verdade que liberta e da misericórdia que acolhe, com desvelo, o pecador perdoado. Coragem, família, o alicerce firme de uma sociedade humanizada e harmoniosa, está em ti e no desempenho das funções naturais enriquecidas pela sabedoria das culturas e pelas lições da história. A civilização do amor só será possível contigo como comunidade de vida em relação, de escola do perdão, de espaço de comunicação de corações irmanados no mesmo objectivo: a felicidade de todos e de cada um dos teus elementos.

   O episódio de Bartimeu constitui um símbolo de grande alcance. O encontro dá-se, o diálogo clarifica o pedido e a compaixão manifesta-se. Jesus declara-o curado, devido à sua fé confiante. O cego recupera a vista e segue Jesus pelo caminho, rumo a Jerusalém, onde verá “coisas maiores”: o amor feito doação que brilha na morte tenebrosa da cruz e na ressurreição refulgente da sepultura na manhã da páscoa. Oxalá a família liberta das possíveis “cegueiras” que a podem atormentar cresça na luz da sua verdade original iluminada pelo amor de doação de Jesus ressuscitado, o rosto da misericórdia de Deus Pai.

domingo, 11 de outubro de 2015

Sobre “por minha causa e por causa do Evangelho”

 

Pedro José L. Correia |  Justiça e Paz – Aveiro

«O maior paradoxo do desejo não está em procurar-se sempre outra coisa:

está em se procurar a mesma, depois de se ter encontrado”,

Vergílio Ferreira (1916-1996) in Público, 19-09-2015, p.48.

1. Sobre um mundo sem causas – Um homem aproximou-se a correr (quer chegar em primeiro?), saúda e Pedro José L. Correia - Aveiroelogia, simultaneamente, ajoelhou-se, em atitude sagrada (?), para perguntar sobre a Vida Eterna. De repente, a sua causa maior fez dele um desprovido-de-causas. Indeciso foi-se embora abandonado pela possibilidade da felicidade real. O não-seguimento pode levar à negação da Causa Maior. Não sobreviver a uma vida libertária; mas onde a liberdade obedece à Vida em plenitude existe entrega e reciprocidade. Não podemos sofrer da doença do «escapismo»; a realidade não pode negar as Causas prioritárias. Há mediações e consensos que evitam o «tudo» ou «nada». Não aceitar a desconsideração do Outro: evitar no fio-da-navalha a cedência à mediocridade, que é sempre um modo inumano de se ir estando.

2. Sobre as causas do insignificante e do significativo – Mudar a mentalidade no Ser. Acreditar que a multiplicidade não anula a transparência evangélica. Rezar por aqueles a quem as injustiças do mundo sem causas tiraram tudo o que Deus queria dar a todos. Viver com os meios que estão ao serviço da Vida e das Causas: não podemos atrasar mais, nem “fazer de conta” a menos. Os meios “ricos” ou “pobres”; o dinheiro e a pobreza não são «neutros». Precisamos que se faça “o” Bem e “a” Verdade. Faça acontecer “o” chamamento ao Ser. Os meios, em certa medida, são as causas que realizam o cumprimento da Pessoa Humana. Se isto é um «homem»; se isto é uma «mulher»: então a partilha do Ser é possível. A vida não se esgota no «presentismo» das riquezas; nem no «eternismo» dos mandamentos. Tudo é relativo. Absoluto a «Fome» e «Deus». “- Vem, dá (-te) e segue-Me!”.

3. Sobre “por minha causa e por causa do Evangelho” – Neste argumentar de Jesus Cristo que centraliza na sua Pessoa e no Evangelho, a chegada da Boa Nova do Reino de Deus reside tudo. Tudo recomeça agora. “Vai, vende e dá tudo… Vem e segue-Me!” Uma coisa te falta. Há uma carência existencial que não por ser enganada. Exige-se um desprogramar da Vida sem excepções. Sem desvios em relação ao “Caminho, Verdade e Vida”. A nossa Generosidade e os nossos Desejos purificados na Sua Causa e na causa do Evangelho, sem distinções. É preciso um «salto qualitativo»: tornar-se Cristão no Seguimento da Causa de Jesus e do seu Evangelho. (i) Deixar de ser-em-si; (ii) ser-para-os-outros em Jesus.

Em suma, existe a ineludível «necessariedade» para “deixar” o Ter; e então, “seguir” no Ser. Na pânica mediocridade de não tentar procurar o “que nos falta”: viveremos momentos perplexos e insatisfeitos. Na sua Causa e por causa do Evangelho é urgente ir relendo, revendo e reouvindo a Vida na sua plenitude generosa e serviçal. Apenas nesse nada perdido tudo será encontrado.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

JESUS OLHA-NOS COM TERNURA

 

Georgino Rocha |  Justiça e Paz – Aveiro

A relação de Jesus com as pessoas mostra-se de forma expressiva no seu olhar. Mc 10, 17-27. Olha com ternura o homem Pe Georgino Rochaque vem a correr para lhe perguntar o que há-de fazer para alcançar a vida eterna. Fita os olhos nos discípulos que ficam espantados pela resposta/comentário dada na sequência da atitude assumida por aquele “peregrino” da verdade. É igualmente expressivo o modo como olha e se compadece das multidões, de Pedro, da mulher adúltera, e de tantos outros que se foram cruzando com ele nos caminhos da missão. Foi assim outrora nas terras por onde passava. É assim agora nas situações em que está presente connosco. Que certeza tão confiante e desafio tão estimulante!

O episódio narrado por Marcos contém um valor simbólico, além de algum suporte histórico. É muito significativo o detalhe de que “naquele tempo ia Jesus pôr-se a caminho”. Parece que todo o tempo é seu, que faz a sua gestão como entende, que pressente o que vai acontecer. Talvez haja aqui um sentido oculto que se veio e revelar: dar possibilidades de chegar a quem o procurava a correr, a quem sente fortemente o impulso do coração, a quem tem perguntas fundamentais a fazer-lhe.

O homem é um ser que faz perguntas. Desde pequenino até ao último momento de lucidez. E em qualquer idade da vida surge a pergunta do sentido da existência, do rumo do trajecto que vem prosseguindo, do desfecho da história pessoal e colectiva, do futuro definitivo, da vida eterna. E deseja receber resposta adequada, em sintonia com a intensidade da sua busca; resposta que dê consistência à sua corrida e alimente a esperança de vir a alcançar o que pretende; resposta que reforce a comunhão do que vive com aquilo que tanto quer viver um dia: a felicidade plena e definitiva no seio de Deus, em ambiente festivo de família ampliada a toda a humanidade.

O desfecho da corrida está condicionado pelas atitudes do corredor. Mas é a vitória final que leva a mobilizar todos os recursos. Ela compensa renúncias e esforços. Ela encanta, atrai e seduz. Ela dá sentido aos êxitos ou fracassos que possam ocorrer no percurso.

Jesus é muito claro. Promete o tesouro no Céu a quem seguir os seus passos na terra, for seu discípulo. A tempo inteiro e de forma integral. Em plena liberdade de comunhão. Todos os outros bens são relativos. Se servem esta liberdade, integram-se facilmente. Se não, há que desfazer-se deles, partilhando-os com os pobres. Só um coração liberto, pode anunciar a liberdade e ajudar a libertar.

Ser discípulo é olhar com ternura os outros e as suas situações. Apreciar os valores que comportam e proporcionar-lhes a ajuda de que precisam para dar o passo possível na busca de um bem maior: sentir-se amado por Deus e procurar corresponder-lhe com a medida cheia.

A Igreja vive uma fase típica na realização da sua missão. Chamada a olhar a realidade familiar com a ternura da misericórdia e a firmeza da verdade, quer anunciar a beleza do matrimónio e da família, e encontrar as orientações evangélicas mais adequadas à diversidade de situações.

“Não à rigidez: Deus quer misericórdia” – clama o Papa Francisco no seu estilo claro e assertivo. E continua dizendo que o coração duro é o verdadeiro perigo para o ser humano porque não deixa entrar a misericórdia de Deus.

Olhar as pessoas com o olhar que Jesus tinha. “Interessava-se primeiro pelo seu sofrimento e, depois, chamando o pecado pelo seu nome, anunciava ao pecador o perdão e a misericórdia de Deus, daquele «Pai seu» que não quer a condenação do pecador, mas que este se converta e viva em plenitude” – afirma Enzo Bianchi, fundador da comunidade de Bose. E conclui: Nesse olhar “está a capacidade da Igreja ser «perita em humanidade».

Este é o olhar de cada cristão, de toda a Igreja em Sínodo. Acolhamos o pedido do Papa Francisco: “Rezemos pelos Padres Sinodais para que, iluminados pelo Espírito Santo, possam dar à Igreja, como família de Deus, novo impulso para lançar as suas redes que libertam os homens da indiferença e do abandono, promovendo o espírito familiar no mundo”.

domingo, 4 de outubro de 2015

sobre «o» que importa «mais» para além da «dureza do coração»

 

Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – AveiroPedro José L. Correia - Aveiro

«O direito de asilo é um direito humano, e qualquer pessoa que pedir asilo deve ser tratada de forma justa e, se for o caso, deve ser acolhida com todas as consequências.»,

Jürgen Habermas, in http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547547-qdireito-de-asilo-e-direito-humanoq-diz-habermas, acesso: 03-10-15.

«Hoje é dia de Eleições Legislativas. O horário de funcionamento das mesas de votação está anunciado entre as 8H00 e as 19H00. Somos convidados a votar, exercendo assim o direito e o dever neste exercício de Cidadania.»,

1. Sobre a dureza do coração – Os discursos e dentro deles a argumentação «maliciosa», «técnica» ou «fundamentalista» (falo dentro da parte católica, e não só), que fazem a linguagem e a leitura da realidade: turvaram e confundiram a minha semana do princípio ao fim. Neste evangelho dominical, na forma breve (Mc 10,2-12), quero ter a impressão que vejo, os dois lados da “barricada”, na reunião dos 279 bispos de todo o mundo, neste Sínodo romano sobre a Família, que se prolonga até ao dia 25 de outubro. Também eu me dei mal, recentemente, com os processos democráticos de decisão. A Democracia terra da liberdade, da fraternidade e da justiça: não faz mal a ninguém; nem a nada. Quanto mais democracia, melhor democracia; mas é preferível ter uma melhor consciência democrática para que na prática possa haver mais democracia. De um lado, dizem, está o cardeal norte-americano, Raymond Burke; do outro lado, dizem, está o cardeal alemão, Walter Kasper. Espero que na era franciscana do papado, e em toda a fidelidade doutrinária, exista a possibilidade de “aparecer” alguém, do «tipo», resgatamos do Céu, o falecido bispo brasileiro, Luciano Mendes de Almeida, que seja capaz de fazer a «síntese impossível». O discurso de Jesus Cristo sobre a «dureza do coração», volta a estar, plenamente, na agenda eclesial e secular. Voltemos à Família como no princípio da Criação. É o pecado (pessoal, social e estrutural) que descria o «humano» feito de barro divino.

2. Sobre o aprendizado e o múnus de «prior» – Também este evangelho entrou por dentro do ser “padre” e do ser “prior”, dia-a-dia, com as Surpresas-de-Deus. Há comportamentos irreconhecíveis. Posturas que ferem e posturas que curam. Onde me encontro com os meus silêncios? Minhas esperas estratégicas, que fazem pensar o meu “umbigo”? Evitar sempre as Omissões. Não sei e quero acreditar que em «casa», tal como os discípulos, posso perguntar de novo ao Mestre. Não tenho mais Tempo para perguntar é preciso Agir. Rezo para que não aconteça. Acontece e volto a rezar para dar um passo em frente. Não rezo bem. Rezo em estado de carência, como fruição negativa. Rezo para que a Bondade do Espírito Santo possa habitar os meus pequenos critérios. O irredutível «Discurso» torna-se mais maneável. A minha inaptidão técnica resiste pela aproximação. Nada resolvido e no piscar de olhos tudo se resolve, por encaminhamentos recusados anteriormente. Feita e impressa: Agenda Paroquial Tripartida: sempre com erros e graças irónicas, caminhamos para além da unidade pastoral, geográfica e evangélica. Esta unidade pastoral não é nem fusão nem nivelamento, mas articulação das diferenças, como num Corpo Vivo. Aguardamos os próximos episódios. No pior está a nossa melhor doação. Vamos começar de novo.

3. Sobre a morte «amiga» e «injusta» – As diversas mortes biográficas estremecem a minha coesão interior. Tudo significativo fica relativo. E nada insignificante pode ser relativizado. Os meus paradoxos emotivos ganham do Cérebro. A Morte «amiga» ou «injusta», terríveis as experiências racionais. Se juntarmos a morte «amiga» e «injusta»: então o Rosto do Absurdo atinge o nível profundo da certeza na própria Fé. Nada fica por baixo de nós... Tal como aconteceu com Jesus Cristo na Cruz. É o ponto final que se tornou um Abismo de Luz. Contra a imprevisibilidade, temos o poder de prometer. Contra a irreversibilidade, temos o poder de perdoar (Cfr. J.M. Pereira de Almeida, in Caritas, nº8, 2015, p.3). Diante deste evangelho, na forma longa (Mc 10,2-16), temos de pedir a Graça da Pequenez. A Graça da não-violência. A Graça da não-imposição. A Graça da humildade e da confiança. A Graça de ter sido recuperado pela «Inocência Segunda», e não alimentar mais o «infantilismo». Tal como uma Criança adormece no colo da Mãe, no abraço do Pai. A Morte continuará injustificável ainda que compreensível; como com o meu amigo José, pela morte prematura e trágica, da sua adorável esposa, Maria; na irrequietude de seus filhos; na Caridade da sua família de sangue. Redescobri outro lado igual: a Morte não justificável, porque não compreensível. Os novíssimos estão dentro do Coração quando chora mesmo sem lágrimas: - Vai custar-me a Alma a presença nas exéquias!?

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

UNIDOS POR DEUS EM MATRIMÓNIO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

“Estais unidos por Deus em matrimónio”, declara o oficiante da celebração dirigindo-se aos noivos, agora recém-casados. E Pe Georgino Rochao coração exulta de alegria e confiança, manifestando-se de tantos modos, sendo visível o ar de festa de todos os participantes. A assembleia de familiares e amigos testemunha, feliz, o evento religioso de forte cariz social. Testemunha e solidariza-se, expressando o seu desejo de que “seja para sempre” a aliança agora selada por Deus, após o mútuo e livre consentimento dos nubentes. E o rito conclui-se com a afirmação do presidente: “Não separe o homem o que Deus uniu”.

Este desejo reveste-se da seiva fecunda do sonho original do Criador do par humano e é avivado sempre que se celebra um casamento cristão. Jesus Cristo assume esta realidade e, perante as vicissitudes da história que desfiguram aquele sonho, repõe a sua beleza inconfundível e abre-lhe novos horizontes. A aliança matrimonial entre homem e mulher passa a constituir um símbolo do amor de doação definitiva, um sacramento do envolvimento divino na relação mútua dos esposos, uma bênção reconfortante para as surpresas que o percurso do casal vier a fazer, um penhor seguro do futuro prometido quando toda a humanidade estiver no seio de Deus.

Face à atitude de Jesus, os seus adversários fazem-lhe uma pergunta/armadilha que dá origem a um diálogo esclarecedor: “Pode um homem repudiar a sua mulher?” “Que vos ordenou Moisés?” “Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher”. “ Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu”.

Este método de pergunta/resposta era muito usual entre os Judeus. Faz avançar na busca da solução, a partir do contributo de cada interveniente e deixa perceber as suas intenções mais profundas. A armadilha é desfeita com a reposição da verdade: Moisés condescendeu por causa da dureza do coração humano. Protegeu a mulher repudiada com o certificado de que estava livre do “seu” dono, podendo dispor da sua vida (era “tramada” a situação da mulher sem o certificado: não podia voltar a casa do pai porque era posse legal de outro que a rejeita, não devia relacionar-se com novos pretendentes, nem beneficiava da protecção de qualquer familiar).

Jesus vai mais longe: situa a mulher no plano de igualdade do homem. Não os condena, mas denuncia a discriminação patriarcal e a ilicitude de certas atitudes. Justifica a atenção de Moisés por causa da dureza do coração humano que cria situações insustentáveis. Apesar deste amor compreensivo, reafirma o valor da aliança matrimonial em que homem e mulher estão chamados a ser “uma só carne”, a construir o mesmo projecto de vida, a crescer na doação mútua, a suavizar a soledade de cada um, a saborear a alegria da comunhão, a renovar-se na esperança fecunda dos filhos queridos, a sentir a satisfação da família aberta e solidária.

A dureza do coração tem, hoje, outros nomes e a situação socio-religiosa alterou-se profundamente. A cultura da sedução e do bem-estar impõe-se cada vez mais. As sociedades parecem mais uma soma de indivíduos egocêntricos do que de pessoas relacionadas e altruístas. A fragilidade das convicções de muitos noivos mostra-se na rapidez com que procuram alternativas à primeira opção. A longevidade pode acentuar o cansaço da vida em comum e despertar o gosto por novas aventuras.

Também há casais que reconhecem sinceramente o engano do seu primeiro casamento e querem refazer a sua vida conjugal. E o divórcio surge como hipótese plausível facilitado pela lei civil. E seu número cresce, deixando a descoberto novas situações a reconhecer, a acompanhar e a evangelizar.

O Papa Francisco com os participantes no próximo Sínodo (4 a 25 de Outubro) vai reflectir sobre a beleza do matrimónio e da família, sem esquecer as realidades actuais em que muitas vivem. É toda a Igreja que está envolvida. Não percamos esta hora. Aproveitemos a oportunidade para nos enraizarmos mais em Cristo e nos sentirmos solidários com quem está “ferido” ou se divorcia e procura viver o amor conjugal honestamente.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

COMUNIDADE ABERTA E TOLERANTE

 

Georgino Rocha |  Justiça e Paz – Aveiro

Pe Georgino RochaA formação dos discípulos é, nesta fase da missão de Jesus, a sua grande preocupação. Acompanha sempre o ensinamento que lhes faz com as acções que pratica: assumir a cruz da vida e segui-lo sem condições – diz a Pedro, acolher a sua proposta de serviço humilde e confiante – responde aos aspirantes ao primeiro lugar, destacando a criança como figura exemplar, adoptar atitudes de compreensão e grandeza de ânimo face ao inesperado e diferente – declara a João ciumento e indignado com o que estava a observar. Pois, conclui, “quem não é contra nós é a nosso favor”. Mc 9, 38-43.

Esta afirmação de Jesus faz parte da resposta dada àquele discípulo, porta-voz do grupo apostólico – que se havia queixado de alguém andar a expulsar os demónios sem licença nem qualquer vínculo de pertença; queixa amargada pelo falhanço de uma tentativa levada a efeito por eles. O Mestre, bom pedagogo e profundo conhecedor do coração humano aproveita a oportunidade e pronuncia uma série de sentenças que Marcos – o autor do relato – compendia e a Igreja nos apresenta.

De facto, há quem faça o bem e não pertença à comunidade eclesial. Os demónios, hoje, terão outros nomes, mas grassam por aí mais do que parece: poluidores do ambiente, semeadores da corrupção, manipuladores dos factos e informação enviesada, provocadores do êxodo de refugiados e da falência de empresas, comerciantes de crianças e mulheres e de órgãos humanos. Contra estas forças do mal, lutam com valentia heroica milhares e milhares de pessoas de boa vontade, educadores sociais, cuidadosos pais e mães de família, voluntários sem número, bombeiros e tantos outros soldados da dignidade humana e da solidariedade intergeracional.

A consciência humana desperta progressivamente para a urgência destas lutas, faz erguer a sua voz nas instâncias mais influentes – escrevo no dia em que o Papa Francisco fala ao Congresso Norte-americano -   e dá origem  a prestigiadas associações humanitárias. Como pode a comunidade dos discípulos de Jesus deixar de reconhecer este bem imenso, sinal da humanidade que em todos habita e quer desabrochar. O Vaticano II, dando voz ao Evangelho para os nossos dias, destaca esta atitude do mundo de hoje e propõe um caminho de diálogo franco e de mútuo enriquecimento.

O bem realizado está profundamente relacionado com Jesus e o seu projecto de humanização cristã. “Quem não é contra nós é a nosso favor”. Esta sentença não é apenas reconhecimento do que se faz, mas guia de orientação para a cooperação sem preconceitos. Diferentes agentes estão a actuar, mas todos a servir a pessoa humana e não a serem “correias de transmissão” de ideologias estranhas que sacrificam ao presente o futuro que é de todos ou rebaixam e reduzem as aspirações de infinito do coração ao momento fugidio e à intensidade do prazer consumista. A pessoa humana centrada na biodiversidade e relacionada com toda a criação. Como deixar de vibrar com este sonho de Jesus transformado em projecto histórico em realização! Vibrar e envolver-se corajosamente.

A narração de Marcos destaca outras características da comunidade cristã: além da tolerância e do respeito pelo que é diferente, do relacionamento solidário com a sociedade de que faz parte, do diálogo que humaniza e procura caminhos de resolução para as tensões e os problemas, vem a coerência de vida, o cuidado dos pequeninos sobretudo na fé, a confiança no futuro carregado de novidade, a certeza da presença actuante de Jesus que assume como feito a si o que for feito aos outros, especialmente aos insignificantes sem cotação social ou religiosa. De facto, a comunidade é um grande sinal do que Deus quer fazer com todas as pessoas – uma família feliz que tem por missão irradiar o amor.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

CRIANÇAS, SÍMBOLO DE UM MUNDO NOVO

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

“Je suis Abou” afirma a criaPe Geroginonça refugiada que, ao ser descoberta no porta bagagens de um camião, sai espontaneamente como se estivesse em terra conhecida e se apresenta aos guardas que faziam o controle da vigilância. A sua fotografia correu mundo e a sua mensagem ainda repercute em muitos corações feridos pelo drama torturante vivido por muitas centenas de milhares de famílias e seus filhos. “Eu sou o Abou” dou o meu nome a tantos outros meninos e meninas que se vêm forçados a correr os maiores riscos para salvar a vida. Espero a vossa ajuda para poder ser feliz e dar-vos o que todas as crianças têm: alegria, ternura e confiança. E podia seguir-se numa conferência de imprensa promovida por Jesus de Nazaré com o Abou ao colo aberta a todos os meios de comunicação. O impacto seria enorme. Algo parecido acontece no Evangelho. Mc 9, 30-37.

A versão deste episódio, algo composta, visualiza a mensagem central que Jesus apresenta aos discípulos nos caminhos da Galileia. Face ao que dizia sobre o seu futuro próximo: ser incompreendido e condenado à morte por crucifixão, ser ressuscitado após três dias de sepultura, eles não percebem nada e sentem medo de o interrogar. É normal. Estavam formatados com a ideia de um messias glorioso, espaventoso, vencedor e  libertador de todas as opressões e ignominias.

Chegados a casa, espaço mais propício para a conversa e a confidência, Jesus insiste no que havia dito e acrescenta: “ Quem quiser ser o primeiro, será o último de todos e o servo de todos”. E visualiza num gesto surpreendente o alcance desta mensagem, chamando e colocando uma criança no meio do grupo, abraçando-a e declarando: Quem acolhe uma criança em meu nome é a mim que acolhe e quem me acolher, acolhe o Pai que me enviou. Mensagem com um sentido preciso e interpelante. Deus revê-se na criança. Jesus faz-se presente na criança. Os discípulos são convidados a reproduzirem as nobres atitudes da criança, a adquirirem uma nova escala de valores, a assumirem um estilo de vida diferente. Como o do Mestre. Grande “balde de água fria” para as cabeças acaloradas pela discussão. E não era para menos! Maravilhosa lição para os pais e educadores. Apelo enternecedor às comunidades cristãs para esta realidade inaudita: a relação da criança nas suas múltiplas facetas.

Que contraste com a mentalidade europeia predominante a respeito das crianças, garantia do nosso futuro: da recusa de nascimentos ao tráfego de bebés e seus órgãos abortados, à escravidão e à violência… ao menino/a único/a, príncipe ditador em crescimento, centro de cuidados e requintes que os/as não deixam ser simplesmente crianças e expandir todas as suas energias. “À ave que inicia os treinos para voar e dá umas quedas não se corta as asas, mas orienta-se o vôo”.

Aquele gesto pretende manifestar o valor da criança, dos pequeninos, dos excluídos, dos insignificantes, dos que facilmente se podem reduzir ao silêncio ou mesmo a nada. É a partir destes que Jesus dá início ao projecto de salvação de toda a humanidade e quer levar por diante.  Custe o que custar. Mesmo o martírio do Calvário. É preciso fazer falar o silêncio das vítimas, repor a dignidade dos descartáveis e sobrantes, facilitar a inclusão de quem é portador de novos valores que humanizam a sociedade, abrir à relação amiga e solidária os vizinhos,  os colegas de profissão e as gerações, cuidar da criação, nossa casa comum, nosso habitat natural ameaçado de morte. Que bom podermos ser os primeiros em tão nobre empreendimento!

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre o despertar festejando

 

Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

“O começo no seio de uma continuidade só é possível como acção”,

Emmanuel Levinas, in Totalidade e Infinito, p.136.

Pedro José L. Correia - AveiroSou um texto corrido sem parágrafos. Podia dar lugar à ressaca mas não é bem a ocasião. Ainda não é o momento certo para o ocaso. Embora o dia, que começou na noitada da véspera…, perante a Solene e Emotiva Procissão da Padroeira. Mais uma vez N. Srª. da Encarnação «fez» o milagre do «bom tempo». Perante o fim talvez possa despertar em mim essa sensação de Tédio diante da Vida. Não creio pois a bolsa dos afectos e dos factos está a transbordar. Tive mesmo de dormir - enquanto primeira noite primordial -, na Gafanha da Encarnação. Acordei com a sensação de frio e por inaptidão técnica, não tomei banho d´água quente. Cá fora no Adro, os homens e as máquinas da recolha de lixo municipal «» faziam o seu imprescindível e impecável trabalho de limpeza. Corri para a Gafanha da Nazaré para que a higiene corporal e mental fosse possível para o despertar rápido e completo. Depois, antes que fosse tarde, fui pagar na Gráfica as pagelas. O pronto pagamento significa que é menos 6,30 euros: o que é óptimo para começar o dia de trabalho. Esqueci de Rezar! A fruição de estar perdido na Memória de outro local quente no Maranhão…, na terra da Senhora das Dores. Não! Agora é Encarnação, Carmo e Nazaré. Transporto um feixe de “padres” incompleto e infinito: Arménio…; Urbino…; Jorge…; Neves…; Lé…; Marcelino…; Francisco(s)… Enraizado no Presente e agradecendo todas as festas futuras. Despertar para o existir comprometido é exigente. A morada; o trabalho pastoral; dizer não e dizer sim; dizer não agora; o tremor da vertigem amistosa; e o inadiável abalo dos desafios. Ao longe, que é perto, os foguetes da Arruada da Mordomia continuam a decorrer a bom ritmo (?). Mais logo o esplendor da Entrega do Ramo. Porém, não sei ler totalmente os sinais áudio. Quase todo perdido com as coisas do administrar, que não avançam num ritmo rápido. Afinal, estou mesmo ressacado e não sei como assumir a fruição e a felicidade, marcadas não pelo «eu» mas pelo «nós». “A alegria e os seus amanhãs” de Emmanuel Levinas, tudo misturado com a religiosidade popular. A música do “Seu Jorge - Ela É Bipolar” (!?), no hiper-mercado, sem o cartão do Continente, mais uma vez esquecido. Sem conseguir abstrair o peso de não saber avançar, apenas comprar os Cadernos de Apontamentos: sempre quadriculados e de capas pretas. Custa tanto confiar como se fosse a primeira vez. Organizar é a tarefa. Agora e depois e mais tarde também. Está muito mais difícil pontuar gramaticalmente a minha existência. Sem consentimento e com o apetite espiritual. O contrário é a Verdade mais dura porque pura na Doação. Sem talvez. Deus é Bom.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

JESUS DE NAZARÉ, DIZ-NOS QUEM ÉS TU

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

A reprimenda de Jesus a Pedro é de lançar todas as esperanças por terra. “Vai-te, Satanás, porque não compreendes as Pe Geroginocoisas de Deus, mas só as dos homens”. Mc 8, 27-35. Pobre Pedro! Havia agido em coerência e proclamado em nome do grupo dos discípulos que Jesus “é o Messias de Deus”, havia achado estranha a recomendação severa que impunha silêncio sobre esta verdade, havia julgado prudente aconselhar o Mestre, a sós, contestá-lo no seu surpreendente anúncio: que tinha de sofrer muito, ser rejeitado, morto e ressuscitado. E Jesus acrescenta dirigindo-se à multidão: “Quem quiser seguir-Me tome a sua cruz… quem perder a vida por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á”.


Este incidente abre “a janela” de acesso à compreensão de quem é Jesus e do modo como realiza a sua missão. Estão em causa várias atitudes, mas fundamentalmente duas: a de quem deseja um messias glorioso, triunfante, miraculoso, exibicionista, poderoso; e a de quem acolhe a confidência de Jesus: enfrentar tudo o que se oponha à sua opção clara por levar “contra ventos e marés” o projecto que Deus Pai lhe encomendou – reconstruir a fraternidade humana de todas pessoas porque têm a mesma origem por natureza – a filiação divina. Esta decisão choca com “os interesses” instalados, a ordem político-religiosa estabelecida, as “venerandas” tradições legalistas.


Do choque, passa-se a tudo o que vai originando o processo de condenação à morte, à paixão dolorosa, ao abandono solitário e à sepultura em campanha alheia. Tudo parece acabado. Porém, Deus Pai faz triunfar a opção de Jesus de Nazaré na manhã festiva da ressurreição. O amor vence a morte. Jesus tem razão. A vida entregue é garantia de futuro feliz. Vale a pena confiar e prosseguir.


Qual a minha atitude fundamental? O que faço mostra a fé que tenho e comunico. O encontro pessoal com Jesus Cristo é fonte da minha experiência cristã, dá sentido a todo o meu agir? Este encontro faz-me/nos considerar Jesus como exemplo moral, pois as suas atitudes nos estimulam e nos moldam; como Bom Pastor, guia da consciência, verdade da inteligência, misericórdia do coração ferido; como Comunhão que nos une a si e nos faz Igreja, apesar de todas as fragilidades; como a Primícia mais qualificada do Reino em realização na história a caminho da plenitude na felicidade eterna?


Jesus de Nazaré, diz-nos quem tu és! A razão humana dá muitas respostas, prolongado e avolumando as de Cesareia de Filipe. O “mercado” religioso faz muitas ofertas. O pronto a servir oferece a medida a gosto de cada um. A conveniência e o momento estabelecem as regras da escolha. O coração saltita de experiência em experiência – qual mariposa – em busca de satisfação adequada.

“Se os cristãos fossem como o seu mestre já teríeis a Índia a seus pés” – afirma o poeta hindu Tagore. E Eddy Merck confessa: “Desejo dar a conhecer Jesus a todos aqueles que não o conhecem. Para mim Cristo tem uma presença contínua em toda a minha vida. Creio profundamente n’Ele, na sua história, na sua divindade”.


Diz-nos, Senhor, quem és tu. Que te escutemos com atenção. Que te comuniquemos com honradez. Que brilhe em nós a alegria da experiência alimentada no encontro contigo.

sábado, 5 de setembro de 2015

www.refugiados.pt.

 

A Comissão Nacional Justiça e Paz é uma das organizações aderentes à Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR). Essa plataforma conta com o apoio de mais de 30 organizações da sociedade civil que se mobilizaram para a resposta à grave crise humanitária de refugiados que chegam à Europa. As suas iniciativas podem ser conhecidas em www.refugiados.pt.


ABRE-TE A UM NOVO OLHAR

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Pe GeroginoO episódio do surdo-mudo ocorre na região da Decápole, situada além Jordão, território independente, habitada por gente pagã. A missão para Jesus não tem fronteiras nem faz discriminações, não se limita a confirmar o que há de bom no homem, mas visa iniciar uma nova criação.

    Marcos – o evangelista narrador – condensa, neste episódio, uma expressiva mensagem, valiosa para todos os tempos, mas sobretudo para os nossos, tão profundamente marcados pela surdez e incomunicação generalizadas, na era em que torrentes de informação circulam sem limites de qualquer espécie. Mc 7, 31-37.

     O surdo-mudo, como pessoa real, é um símbolo humano, representante silencioso e eloquente de uma realidade bloqueadora das capacidades relacionais. Vive isolado no seu mundo fechado, apesar da multidão que, deambulando nos caminhos da vida, passa por ele e o vê, está incapacitado de sair da sua situação, é pagão e vive num território estrangeiro. Símbolo pessoal e colectivo de uma sociedade com tremendos contrastes: edifícios altos e casas fechadas; multidões de migrantes sujeitos à intempérie e minorias de elites superprotegidas, auto-estradas amplas e estreiteza de horizontes; mais dinheiro em circulação e menos posses; casas maiores e famílias mais reduzidas; mais coisas ao dispor e menos tempo para desfrutar do seu bom uso; mais dados de informação e instrução e menos sentido e sabedoria da vida; mais medicamentos e menos saúde e bem-estar. A humanidade naufraga, arrolando a sua dignidade em qualquer costa para aonde os ventos e as marés de interesses sórdidos a empurram e abandonam aos abutres de turno. 

“Fomos e regressámos da lua, mas temos enorme dificuldade em atravessar a rua para visitar o vizinho”. Conquistámos o espaço exterior, mas esvaziámos o interior. Fabricámos mais material electrónico e guardamos enormes quantidades de informação, mas comunicamo-nos menos, vivemos ensimesmados. Estamos à distância de um clique e a milhares de léguas de proximidade afectiva e compreensiva. Sentimos a necessidade compulsiva de viver os impulsos da conexão (estar conectados) e somos frequentemente insensíveis aos apelos da consciência ferida pela voz de familiares esquecidos. Estes contrastes são apenas flashes de uma imagem da “multidão solitária” que predomina e cresce na era das comunicações.

Jesus acolhe o surdo-mudo que lhe apresentam. Há sempre alguém, felizmente, que se deixa condoer e põe “mãos à obra”. Retira-se com ele e, por meio de gestos normais e familiares para os destinatários do evangelho de Marcos, que viviam no meio da cultura helénica, realiza a cura, abrindo os ouvidos e soltando os entraves da língua. “Efatá!”, abre-te a uma nova realidade, vê quem te rodeia e contigo quer caminhar, ouve o falar das pessoas, admira o cantar das aves e a beleza dos céus, sonha para além das aparências, entra no mundo novo. Em ti começou germinalmente a nova criação que será consumada na cruz florida da ressurreição.

Efatá! É exortação e apelo, palavra de ordem e missão, grito de confiança e gesto de bem-fazer. É sobretudo sinal eficaz de que Deus não desiste do seu projecto sanador das feridas humanas a fim de que, libertos de forças atrofiadores e desvirtuantes, brilhe em nós com nova intensidade a saúde integral a que estamos chamados.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

«Refugiados: a exigência da fraternidade»

 

A Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana publicou uma nota sobre a atual crise de refugiados: «Refugiados: a exigência da fraternidade»:

refugiados«No dia da apresentação pública da PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados, a que a Conferência Episcopal Portuguesa já deu o seu apoio e que conta com competentes organizações no terreno, a Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana deseja manifestar-lhe, todo seu apreço, na esperança de que ajudemos a minimizar o impacto da grave crise humana que atualmente é vivida a nível mundial. Num recente artigo de jornal (o Frankfurt Allgemeine Zeitung), um governante de um estado europeu afirma temer pela perda das raízes cristãs da Europa devido à chegada do grande número (fala de “invasão”) de refugiados, sobretudo muçulmanos. Diz ser “alarmante” o facto de os povos europeus não conseguirem “defender os próprios valores cristãos”. A Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana considera alarmantes estas afirmações que contrariam objectivamente a pessoa de Jesus e o seu Evangelho. Importa que possamos agir em rede europeia e internacional, para não se perderem esforços nem diluírem responsabilidades, até porque se trata duma operação de futuro complexo. A Conferência Episcopal Portuguesa, agora em Roma, na sua visita ad Limina, para encontros de trabalho com o Papa Francisco e as instituições da Santa Sé, deseja contribuir para uma resposta concreta, em colaboração com o Estado e a comunidade internacional.»


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A PALAVRA QUE ILUMINA O CORAÇÃO

 

Georgino Rocha  | Justiça e Paz – Aveiro

Pe GeroginoJesus continua a dar-nos boas notícias nos seus ensinamentos. Aproveita oportunidades que as situações da vida lhe proporcionam ou cria factos que realizam o que, depois, anuncia em narrativas estimulantes. Mc 7, 1-8. 14-15. 21-23. Hoje surge no seu caminho um grupo de fariseus e de doutores da Lei. Os primeiros, muito zelosos em manter as tradições e em as observar escrupulosamente. Os segundos, conhecedores da Lei e das suas centenas de normas que examinam até ao pormenor. Reúnem-se à volta de Jesus, num espaço fora da sinagoga. Ao verem a atitude dos discípulos – comer sem lavar as mãos, atitude que contagia os alimentos, tornando-os impuros e, por isso, contrariando a tradição -, pedem-lhe explicações com a pergunta inquisitorial: Porque procedem assim, não respeitando os antigos nem as suas tradições sagradas?

A resposta de Jesus lembra-lhes a profecia de Isaías: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Não adianta prestarem-me culto, porque ensinam preceitos humanos. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. E aduz o exemplo concreto do Corbã – voto feito por alguém que dedicava ao Templo os bens pessoais (coisa aparentemente bela e louvável), ainda que os pais sofressem grandes necessidades e viessem a morrer de fome. “E fazeis muitas outras coisas como estas”.

A história regista inúmeras situações em que os preceitos humanos se sobrepuseram à Palavra de Deus, a autoridade evangélica reveste a cor do poder político e económico, a adesão cordial a Cristo Salvador e a fraternidade humana são envolvidas por roupagens devocionais discriminatórias. A este propósito afirma São João Crisóstomo com grande sabedoria “Vós adornais os templos, mas tendes Cristo metido nas prisões”.

Será a partir desse húmus que a nova etapa de evangelização terá de avançar, prosseguindo o belo e estimulante exemplo do Papa Francisco: Louvar a Deus com as “mãos sujas” do serviço humilde, com o coração apaixonado pela libertação dos miseráveis, com a fantasia criadora de novas oportunidades de entreajuda solidária.

O grupo dos doutos e zelosos interlocutores vê-se contraditado no seu próprio campo: o das tradições e leis, o de ter uma vida divorciada da religião, o de negar, com a prática, o preceito de Deus. E para ilustrar este contrassenso, Jesus conta uma parábola aberta à multidão sobre o alimento que se come, vai para o estômago e depois sai naturalmente transformado em imundice. É dentro que se gera a pureza/virtude e não no exterior, no coração/na consciência e não na aparência – mesmo vistosa e com ares sagrados -, na sintonia com os princípios/mandamentos de Deus e não com interpretações – ainda que doutas – de ocasião, acomodadas às conveniências religiosas, sociais e políticas ou às modas auto-denominadas progressistas e inovadoras.

O centro da nova moralidade, que Jesus anuncia e condiz com o melhor da dignidade humana, está na consciência iluminada não apenas pela natureza nem pela sabedoria das culturas ou dos direitos fundamentais do Homem, mas pela Palavra de Deus, assumida na sua integridade e fielmente interpretada. Consciência que pondera os elementos de que dispõe, que se abre à verdade da razão esclarecida, que valora as circunstâncias em que se situa, que faz opções coerentes e consistentes, que não abdica da sua dignidade, mesmo em caso de perigo de vida. Veja-se o exemplo de Sócrates, o filósofo, Jesus Cristo, Tomás Moro e tantos contemporâneos mártires por causas nobres/santas. Brilhante resposta. Belo ensinamento, a reter sempre na memória agradecida.

É de dentro do coração da pessoa que sai o que degrada ou enobrece a dignidade humana, mantém a integridade moral, manifesta a sua sintonia com o ritmo do “coração” de Deus que, em Jesus Cristo, define as novas regras de apreciação da bondade e da maldade do agir pessoal e social, privado e público. Em todos os campos. A consciência constitui o âmbito do encontro da pessoa com Deus, encontro que se capta e manifesta por uma voz discreta, “audível” no silêncio e na palavra, na sensibilidade dos artistas e na contemplação dos orantes, nos gemidos das vítimas e nos gestos dos profetas. Jesus ensina-nos a cultivar a bondade do coração/consciência, para não sermos excêntricos, mas testemunharmos o valor do mundo interior de cada pessoa que se projecta necessariamente nas atitudes e comportamentos exteriores e públicos.

domingo, 23 de agosto de 2015

esta palavra é dura


Pedro José L. Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

 

«Dai-me a castidade e a continência; mas não ma deis já»,

Santo Agostinho, Confissões, Livraria A. I., Braga, 2008,

Liv. VIII, nº7, p.230.

Pedro José L. Correia - Aveiro

(...)

“- Nunca abandonaremos!?”: é dizer acima das nossas possibilidades. Somos como repensa Aviad Kleinberg, que passo a parafrasear, no exemplo sui generis: “Há uma espécie de lagartos que desenvolveram um mecanismo de sobrevivência único: podem separar-se das caudas quando estão em perigo. A cauda abandonada, em princípio, atrairá a atenção dos seus predadores, que cravam os dentes nos aperitivos, mas deixam escapar o prato principal”. Cada um de nós Crentes escondemos esqueletos vergonhosos nos nossos armários. Ocasionalmente, confessamo-nos (na forma “ritual”, cada vez menos; na forma “informal”, cada vez mais…), mas não divulgamos as nossas podridões. Para tudo um Tempo, Espaço e Modo. Precisamos de uma “rede de esgotos eclesial”. “O restaurante humano serve sobretudo caudas, mas o leitor que esteja disposto a examinar cuidadosamente a cauda retorcer-se, sem se precipitar de imediato para cravar os dentes nela, aprenderá muito sobre o corpo do qual ela se separou” (Cfr. Sete Pecados Capitais – Uma nova abordagem, Ed. Quetzal, Lisboa, pp.16-17).

(...)

Esta palavra é, sem margens de manobra, pura e dura. Pois duros somos nós na Cabeça, Coração e Estômago. Deus não o É. O Seu Espírito faz-nos oferta e dom. É importante esta consciência da abertura ao Espírito, esta necessidade permanente de espiritualidade: como modo de vida que não é dureza nem imposição, mas leveza e preferência. Ou uma mistura de ambas: exigência coerente!

FONTE: Cfr. AZEVEDO, Dom Walmor Oliveira, in Na Escola do Salvador, Editora PUC Minas, Belo Horizonte, 2009, pp.361-364. Obs. Além da citação presente no texto.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

ACREDITAMOS QUE TU ÉS O SANTO DE DEUS


  Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Pe GeroginoO discurso do pão da vida atinge o auge, no desabafo de Jesus, que João formula na pergunta dirigida aos Apóstolos: “E vós também quereis ir-vos embora?” A sinceridade denota um sabor de amargura. A preocupação manifesta um receio fundado. O risco é evidente e virá a ser concretizado na paixão. A circunstância, aliada ao tom da voz e ao brilho do olhar, provoca a resposta eloquente de Pedro: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”. Jo 6, 60-69.

A crise atinge o auge: as multidões deixam de andar na sua companhia e perdem o gosto de o ouvir; os nobres judeus, após discussões intensas, “viram-lhe as costas”, deixando palavras mordazes; os discípulos, “escandalizados” pela vivacidade crescente e realista da mensagem anunciada, cansam-se e desanimam, dispersando-se. Resta o grupo dos Doze. Jesus sente o abandono, mas não cede em nada, não suaviza o alcance do discurso, não faz uma religião à medida do gosto de cada um nem das tradições legalistas. E seria tão fácil. Como ainda hoje se pode verificar.

A hora é solene. Os doze constituem o resto fiel que vai ser posto à prova. A pergunta de Jesus é certeira e provocatória, dirige-se à opção livre do grupo. Podiam optar por ir-se embora, como os outros, por não aguentar o que não compreendiam, por não se sujeitarem à chacota de comentários desvirtuantes. A voz de Pedro irrompe naquele silêncio fecundo: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos que Tu és o Santo de Deus”. Não há outra palavra, nem projecto, nem aliança com futuro a não ser a que será selada com a entrega do corpo e do sangue de Jesus.

A resposta de Pedro é uma resposta-compêndio das buscas da humanidade ansiosa por encontrar palavras de vida eterna. E as marcas desta procura ficam em nomes célebres como os sábios, em obras de filósofos antigos e modernos, em façanhas de heróis de impérios caducos, em exemplos de vida de santos reconhecidos e anónimos… O coração humano foi-se saciando com o êxito do melhor do seu esforço, mas dando sinais claros de que permanecia um vazio a preencher. Santo Agostinho expressa-o de forma muito bela. “Fizestes-nos Senhor para Vós e o nosso coração está inquieto até em Vós repousar”.

“A quem iremos, Senhor?” Interroga-se a humanidade pela voz de Pedro. Todos nos dão respostas efémeras e nos “servem” produtos de pouca duração. A história constitui o memorial deste valor reduzido. A experiência de vida, acumulada em sabedoria, mostra-nos à-evidência que só “Tu tens palavras de vida eterna”, consistentes e definitivas, firmes e credíveis. E testemunha-o o exemplo heróico de tantas pessoas bondosas e de muitos santos e mártires. De todas as condições sociais e étnicas.

Ficar com Jesus e andar com Ele é opção definitiva e livre de grande alcance e de forte empenhamento. Comungar o seu projecto de vida, não é apenas receber o pão/hóstia da eucaristia ou participar em eventos religiosos de alcance social ou pertencer a algum grupo de bem-fazer. É assumir o seu estilo de vida sóbrio e disponível, as suas opções claras pela ajuda/libertação dos mais pobres e excluídos, é resistir ao tsunami consumista e acelerar a construção de uma sociedade alternativa, espelho da civilização do amor. É dar a vida até ao fim por amor.

O decisivo – afirma Pagola - é ter fome de Jesus. Procurar desde o mais profundo encontrar-nos com Ele. Abrir-nos à sua verdade para que nos marque com o seu Espírito e potencie o melhor que há em nós. Deixar que ilumine e transforme as zonas da nossa vida que estão todavia sem evangelizar.

Então, alimentar-nos de Jesus é voltar ao mais genuíno, ao mais simples e mais autêntico do seu Evangelho; interiorizar as suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o instinto de viver como Ele; despertar a nossa consciência de discípulos e seguidores para fazer dele o centro da nossa vida. Sem cristãos que se alimentem de Jesus, a Igreja enfraquece sem remédio.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

«CARTA ABERTA»: “O sinal da Assunção de Maria”, na entrada ao Serviço das Paróquias da Gafanha do Carmo, Encarnação e Nazaré (15/16-08-2015)”.


Pedro José Correia  |  Justiça e Paz – Aveiro

Pe. Pedro José
“Eu acredito que a vida humana não pode ser compreendida
sem uma história. Ao analisar a situação da espiritualidade
e da religião comprovo que há muitas pessoas à procura de algo,
seja uma concepção ateia ou religiosa.
Há também muitas pessoas que lamentam a erosão do cristianismo
e resistem ao seu desaparecimento.
O desafio é compreender os dois lados,
crentes e não crentes, e que possam conviver”.
Charles Taylor, in http://www.ihu.unisinos.br/noticias/545594-charles-taylor-as-pessoas-hoje-nao-tem-claro-o-sentido-da-vida, acesso, 14-08-2015.







“É um dia para magnificar Deus.
Esta festa da Assunção tem uma dupla dimensão
de que gostaria de vos falar.
Explica-se a si própria e explica-nos a nós”.
JOSÉ FILIPE RODRIGUES, op,
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho, 2014, p.153.




1. Sobre a linha do Passado (“a” Memória):
Somos uma Narrativa que vem do passado até ao presente e não “estaciona” na linha do Tempo, entrará pela Eternidade, creio eu.
Permitam-me, por isso, uma confidência pessoal. Quando celebrei o Sacramento da Confirmação, na Igreja Paroquial de Esgueira, a 29 de Dezembro de 1991, na presença do bispo D. António Marcelino, foi meu Padrinho de Crisma, um aluno mais velho do Seminário Maior de Coimbra, chamava-se: Francisco José Rodrigues de Melo. Eu tinha 19 anos, hoje, tenho 43 anos; ele tinha 23 anos, hoje continua uns anos à minha frente…; a nossa Amizade com a «moção» do Espírito Santo, reconheço agora, ficou “selada” e dura há 24 anos... Vencemos silêncios, distâncias e intrigas. Acrescentar que sendo críticos frontais um-do-outro… a nossa Amizade nunca saiu retraída, pelo contrário. Não me canso de afirmar: “O sentido da vida é a amizade. O sentido da amizade é a fé”. Que o Espírito Santo nos possa vivificar a todos! O que havia para dizer sobre este momento de passagem de Testemunho na pastoral do ministério, em Comunhão de Presbitério (a partir de baixo), já foi dito e está escrito, no texto publicado, há 15 dias, como manifesto público de “Acção de Graças Pelo Ministério do Pároco da Gafanha da Nazaré, Gafanha da Encarnação e Gafanha do Carmo”, 01 Agosto de 2015 (Cfr. https://pedrojosemyblog.wordpress.com/2015/07/31/texto-de-accao-de-gracas-pelo-ministerio-do-paroco-pe-francisco-melo/ , acesso: 15-08-2015).
No reflexo da Vida Espiritual dos Outros reconhecemos nossos defeitos e nossas virtudes. 

2. Sobre a linha do Presente (“a” Consciência):
Começo pelo mais difícil. A responsabilidade da História e dos números que significam: Pessoas e Vidas.
A Instituição da Paróquia do Carmo - 06-11-1957, tem, presentemente, 57 anos, em Novembro próximo, fará 58 anos de instituição.
Gafanha do Carmo – Censos 2011
Freguesia População Residente Total População Residente Homens População
Residente
Mulheres

Famílias Alojamentos Edifícios
Gaf Carmo 1.758 874 884 605 922 881
A Instituição da Paróquia da Encarnação – 03-05-1928, tem já feitos este ano 87 anos de instituição.
Gafanha do Encarnação – Censos 2011
Freguesia População Residente Total População Residente Homens População
Residente
Mulheres

Famílias Alojamentos Edifícios
Gaf Encarnação 5.487 2654 2833 2022 3841 2514
A ambas, Carmo e Encarnação, servirei como Pároco, tendo como Vigário Paroquial o Pe. César Fernandes.
A Instituição da Paróquia da Nazaré – 31-08-1910, está a menos de um mês de completar 105 anos, servirei como Vigário Paroquial, do Pároco Pe. César Fernandes.
Gafanha da Nazaré – Censos 2011
Freguesia População Residente Total População Residente Homens População
Residente
Mulheres

Famílias Alojamentos Edifícios
Gaf Nazaré 14.756 7088 7668 5629 8837 5152
Estou nomeado em diálogo de discernimento e obediência, com o nosso bispo D. António Moiteiro, por um período de 6 anos, assim me disse, oralmente, e o aconselha, normativamente, a Conferência dos Bispos portugueses. Para haver estabilidade, criatividade e serviço… Vamos juntos caminhar nesta história feita em comum, “erguidos nos ombros dos nossos antepassados”, através da Fé e Cultura de Matriz Católica.
Olhei para «fora da Igreja-comunidade» para os enormes desafios… não quero esquecer que «dentro» da nossa Igreja temos “tesouros velhos e novos”… quanto mais nos conhecermos pelo «Evangelho» mais Alegria, para viver e servir, haverá à nossa volta. 

3. Sobre a linha do Futuro (“o” Projecto):
 
3.a) - “Tudo faz sentido: do passado obscuro ao futuro incerto” (cfr. Saul Bellow). “Se na minha fraqueza e debilidade nem sempre Deus for louvado como merece, e nem sempre vós fordes servidos como é meu dever, pedi comigo ao Senhor e por mim, para que, ao menos como Pedro, possa passar no exame do amor a Cristo e, com um coração humilde e confiante, olhos nos olhos, diga com verdade ao Senhor: - “Tu sabes tudo, Senhor, bem sabes que Te amo” (Jo 21,17) (D. António Marcelino, Da primeira Saudação Pastoral, como Bispo de Aveiro – 07/02/1988).
3.b) - O Sacerdote (De um manuscrito medieval – na minha versão treslida…).
Um sacerdote deve ser
simultaneamente pequeno e grande,
nobre de espírito, como de sangue real,
simples e natural, como de raiz camponesa,
um herói na conquista de si mesmo,
um homem que se bateu com Deus,
uma fonte de santificação,
um pecador que Deus perdoou,
dos seus desejos o soberano,
um servidor para os tímidos e os fracos,
que não se abaixa diante dos poderosos
mas se curva diante dos pobres,
discípulo de seu Senhor,
cabeça de seu rebanho,
um mendigo de mãos totalmente abertas,
um portador de inúmeros dons,
um homem no campo de batalha,
uma mãe para confortar os doentes,
com a sabedoria da idade
e a confiança duma criança,
em direcção ao alto,
os pés na terra,
feito para a alegria,
especialista no sofrimento,
isento de qualquer inveja,
com perspectivas largas,
que fala com franqueza,
um amigo da paz,
um inimigo da inércia,
fiel para sempre...
Tão diferente de mim!
(Versão adaptada: BRUNO FORTE, “O Sacerdócio Ministerial: Duas meditações teológicas”) 

3.c) – Conto, abusando da vossa paciência, duas experiências quotidianas de trabalho e lazer, irritantes e abençoadas pela mão de Deus. 1ª) Há dois dias atrás, pela manhã, fiquei preso dentro de casa, isto é, não podia sair de carro…; liguei do telemóvel a pedir esclarecimentos e ajudas e NADA… Aprendi imenso sobre os esgotos de Rede Pública, observando e dialogando com os trabalhadores da empreitada… e quando pediam água [para fazer a massa de cimento, sem eu saber…], ofereci umas minis frescas!?… Resposta pronta: - Obrigado mas ainda é cedo… Ri para dentro. Mas quando passamos, agora, na rua pública: Saudamo-nos de modo diferente! 2ª) Ontem, à noite, no fim do dia de trabalho quase exausto… cheguei bem atrasado ao jogo de futebol que decorria no Estádio do Beira-Mar; não vi o primeiro golo…, vi em directo, só no meio da multidão, os dois últimos golos - pelo bilhete e pela compra do cachecol do clube perdedor, para oferecer a prenda ideal, ficarei 2 semanas sem comprar jornais. Mas pela experiência de 22.000 pessoas num estádio suspensas para ver a marcação do penalti redentor: uma verdadeira experiência religiosa secular. Estava lá outra vez na melhor companhia possível! Fui evangelizado sem querer e também evangelizei quem quis saber através de mim…
Sempre a Ternura e a Ironia e de Deus, nestes duas experiências quotidianas. 

3.d) – Nesta Saudação e Agradecimento finais, falo: a todos os Paroquianos, presentes e ausentes (in)voluntários; a todo o Povo, enquanto Cidadãos, que residimos nestes terras que são a nossa Casa Comum; e de modo especial, às Autoridades Civis, aqui presentes [nomeadamente, a Junta Freguesia e a Câmara Municipal, nos seus Presidentes, e/ou representantes]: gostaria de parafrasear, é necessário que «todos nos interessemos por levar Jesus Cristo àqueles que ainda não acreditem n’Ele», se alguém me perguntar quais são as urgências, que tentarei ajudar a resolver, responderei:
- os pobres e desvalidos;
- da catequese das crianças até à formação dos jovens;
- da Oração à formação cristã dos adultos, nas suas várias vertentes;
- da atenção e ajuda constante ao Mundo».


No «resto» que é tudo o que temos que «ser e fazer»... HOJE e AGORA (depois de termos rezado o Credo e de ter recebido as Chaves que verdadeiramente fazem faltam…): apenas “Isto”:
“Aprender, Aprender, e novamente Servir”.
Quanto mais Aprender a ser Pároco,
melhor será o Serviço às Comunidades.
Peço a Vossa Oração, Paciência e Ajuda para continuarmos a Trabalhar Juntos.
A Bênção de Maria, para cada um de Nós e nossas Famílias,
como Mãe da Igreja e Nossa Padroeira, nos acompanhe sempre.

O PÃO DE JESUS GARANTE A VIDA ETERNA

 

Georgina Rocha |  Justiça e Paz – Aveiro

Pe GeroginoO escândalo agrava-se. As afirmações de Jesus são demasiado claras e contundentes para os judeus. Jo 6, 51-58. Não conseguem suportá-las. E, sem um novo modo de ver – a fé que brota do amor de Deus Pai – quem pode conformar-se? Como é possível “dar-nos a sua carne a comer”?, interrogam-se com lógica natural e ética religiosa, condensando muitas outras perplexidades que os afligiam e espelham muitas outras que, ao longo dos tempos, virão a desafiar a razão humana, ainda que iluminada pela fé. Face à estranheza do “assunto” e ao agravamento das dúvidas, não tardam a evoluir na sua atitude: do entusiasmo precedente, pela multiplicação dos pães, e das expectativas decorrentes, das interrogações fundadas à crítica aberta, da recusa frontal ao abandono. Em breve, chegará a vez de Jesus questionar os próprios Apóstolos/discípulos fiéis: “Vós também vos quereis ir embora? Pedro, espontâneo e ousado, responde pelo grupo: “A quem iremos, Senhor. Tu tens palavras de vida eterna”.

     Jesus não dá explicações. Faz afirmações. O modo há-de surgir oportunamente. E o anúncio passa a realidade na ceia de despedida, no lava-pés, no mandamento novo do amor. Modo que surge narrado por Paulo na 1ª. carta aos coríntios 11, 23-26.

     As afirmações de Jesus têm, em João, uma ênfase especial: seis vezes menciona a palavra “carne” e três “sangue”. Trata-se de comer e de beber, em forma sacramental, o corpo e o sangue de Jesus, agora celebrada na eucaristia e, depois no seio de Deus, no banquete das “núpcias” do Cordeiro.

     “Contra ventos e marés – repete o Irmão Roger de Taizé -, a Igreja católica tornou possível que a Eucaristia permaneça como fonte de unanimidade na fé”.

     Contra ventos e marés, temos de continuar a dizer “tomai e comei”, saciai as vossas fomes, fruto de campos estéreis pelo desvio de águas, pela desolação da guerra, pela indústria química, pelo fogo criminoso, pelo abandono forçado. Comei alimentos produzidos pelo orçamento militar bélico transformado em investimento agrícola rentável, pela aplicação de capitais na limpeza das águas e na “desintoxicação” dos campos.

     Contra ventos e marés, precisamos de resgatar o sangue de tantas vítimas inocentes, apoiar a prática organizada da justiça e a penalização dos algozes, difundir a cultura da ética na economia e no uso dos bens, empenhando-nos em fazer crescer a consciência da dignidade humana que brilha, de modo singular, em Jesus Cristo, pão repartido por um mundo novo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

DEIXAR DEUS SER DEUS

 

Georgino Rocha  |  Justiça e Paz – Aveiro

Os judeus caem em si. A condição social de origem de Jesus não condizia com o reconhecido estatuto de Mestre e, menos Pe Geroginoainda, com o seu discurso após a multiplicação dos pães. Jo 6, 41-51. E, coerentemente, interrogam-se sobre o que está a acontecer: Um artesão de Nazaré da Galileia ser o enviado de Deus? O filho de José e de Maria, bem conhecidos na terra, declarar-se pão da vida? O deslocado de Cafarnaum ensinar, com linguagem dura, “coisas estranhas” na sinagoga? Donde lhe vem tal autoridade? Jesus não entra “no jogo” de pergunta-resposta. Os factos estão à vista, são públicos. A explicação é clara, persuasiva e respeitadora. A mensagem é apelativa, mas não surte efeito. Em vez de se deixarem atrair por Deus e entrar na novidade que o ensinamento de Jesus comporta, começam a murmurar e “estancam” no seu rígido pensar e nos seus velhos hábitos, distanciam-se interiormente e muitos acabam por O abandonar.

João, o autor da narrativa, destaca a relação de Jesus com Deus Pai e faz uma excelente catequese que choca abertamente com a mentalidade dos ouvintes judeus. Eles, como talvez muitos de nós, têm as suas ideias a respeito de Deus e querem encerrá-Lo nesse quadro de referências. Jesus propõe uma perspectiva diferente: A partir do que digo, ajustem o vosso modo de pensar, alterem a vossa compreensão, conformai a vossa vida. “Não murmureis entre vós, Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer”.

A esta certeza chegou Edith Stein, após um longo caminho de procura. Um dia, encontra a autobiografia de Santa Teresa de Ávila. Edith lê o livro durante toda a noite. “Quando fechei o livro, disse para mim própria: é esta a verdade”. Sente-se uma estrangeira no mundo ( era professora universitária). Faz-se religiosa carmelita, vem mais tarde a ser presa pela Gestapo, levada para a câmara de gaz e os seus restos mortais queimados no campo de concentração. Hoje é celebrada com o seu novo nome Santa Teresa Benedita da Cruz.

A atitude dos judeus constitui uma fase especial na vida de Jesus: é a hora da grande surpresa e interpelante novidade, do anúncio do desejo de ficar sempre connosco no pão novo, na eucaristia do seu corpo e sangue, da doação completa, a fim de que o mundo tenha vida em abundância e qualidade, do envolvimento de Deus Pai na realização plena desta entrega definitiva por amor. Jesus cala os seus sentimentos para nos deixar a possibilidade de os pressentir e auscultar, de os saborear em doce intimidade e proclamar em ousadia profética. E aí está o registo da história e o testemunho vital dado por tantos cristãos, a confirmarem a riqueza daqueles sentimentos e a dar-lhe rosto em situações tão diversas. Sirva de referência, como “vozes” falantes desta diversidade, São Tarciso, o menino-mártir da eucaristia que o papa Sixto enviava às prisões de Roma a levar a comunhão, e Óscar Romero, arcebispo de São Salvador, assassinado por um “pistoleiro” a mando do poder opressor do povo, na ocasião da celebração da missa.

“Não murmurei entre vós” – exorta Jesus, aludindo à sua origem humilde, semelhante à de tantos outros que vivem com dignidade e são defensores da verdade, que ganham o pão com o suor do seu trabalho e se esforçam por construir uma família honrada e solidária, que estão disponíveis para o serviço do bem público que é de todos, mas só alguns se prontificam a fazer.

Que oportunidade ainda hoje tem esta exortação. Está em curso a Semana Nacional do Migrante e Refugiado. Chegam e partem pelos mais diversos motivos. Apresentam-se com o seu “berço” étnico e cultural. Fazem a diferença. Necessitam de apoio, de trabalho, de segurança. Oferecem a sua riqueza de valores que muito ajudarão a humanizar a nossa sociedade e, talvez, a revitalizar a fé cristã. Não murmureis, mas procurai acolher, compreender, facilitar a participação, apreciar a comunhão das diferenças.

“Queridos migrantes e refugiados! Não percais a esperança de que também a vós está reservado um futuro mais seguro; Que possais encontrar em vossos caminhos uma mão estendida; que vos seja permitido experimentar a solidariedade fraterna e o calor da amizade!” exorta o Papa Francisco.

Não murmureis mais. Deixai Deus ser Deus e vede como se manifesta em Mim. Deixai-vos atrair por nós e vereis estas “coisas” com um novo olhar – o da fé confiante; compreendereis a relação que entre nós existe e apreciareis o pão que vos ofereço – o meu corpo na eucaristia – para ser o alimento que vos acompanha na vida e revigora as vossas forças debilitadas – continua Jesus a dizer-nos em surdina, para não provocar incómodo desnecessário a ninguém e para despertar os “ouvidos” do coração humano. Os nossos!